Enquanto o mundo se despedia de mais um ano com desejos de paz, lentilhas e promessas, ele apareceu: o porta-voz do apocalipse cotidiano. Um homem que se acha o Messias das verdades absolutas, mas é só mais um macho barulhento cuspindo preconceito e achando que tem plateia. Nina estava lá. E ela lembra de tudo.
Era 31 de dezembro. A fila do mercado parecia mais longa que o último suspiro do ano. Todo mundo desesperado atrás do símbolo da sorte: uva, romã, lentilha, energético, bebidas destiladas, bacalhau, pernil e ilusões embaladas a vácuo. A sandália rangia com o suor dos pés, fazia um calor escaldante, que me faz suar só por existir. Eu só queria sair dali com dignidade e um pacotinho de castanhas. Mas ele apareceu.
O Jurandir do Apocalipse.
Esse tipo de homem surge como se tivesse saído de um meme ruim: tão comum que parece caricatura malfeita desses homens ressentidos que culpam mulheres pelos próprios fracassos existenciais.
Boné virado pra trás, regata estampada com uma aquarela dos EUA (como se o Brasil fosse o 51º estado numa liquidação de Black Friday), músculos inflados por braçadas tortas na academia e uma arrogância fermentada em desinformação. "Tem que armar todo mundo!", dizia, cuspindo saliva ideológica. "Agora é moda ser gay, lésbica, tudo doutrinação! Isso tá acabando com a família brasileira!"
E eu ali, segurando a cestinha preta como quem segura a própria sanidade. Se ser lésbica fosse uma escolha, Jurandir já teria me feito abrir uma comuna de mulheres sensatas num sítio isolado com acesso à arte, chá e silêncio. Sei do sucesso que faria.
Ele não falava, ele berrava. Esse tipo não quer conversa, quer plateia. Alugava a paciência de uma senhora que parecia prestes a evocar o neto encarnado de Allan Kardec só pra salvá-la. O calor subia. A fila não andava. E o porta-malas do carro dele provavelmente cheio de energético e bíblia da bala.
Pensei em responder. Gritei um “vai tomar no cu” mental. E fui pra outra fila. Porque se ele escutasse, talvez eu estivesse passando o Réveillon tocando harpa num plano espiritual, sem partitura.
Jurandir se dizia cidadão de bem. Mas por que tanto desejo de bala? Vai usar a arma no trânsito? No bar? No Tinder? Vai apontar pra moça que recusou sentar à mesa com ele?
O ano virou. Mas o ranço ainda fermenta. Ainda bem que existe arte, ironia e cronista com fígado. Porque, no fim, talvez a gente não precise de arma — só de voz, memória e coragem pra transformar nojo em narrativa.
— Nina contra o mundo
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