Quando o carro descia daquela rua de barro e virava
à esquerda, parando em frente ao portão daquela residência de fachada verde,
não era preciso esperar muito, logo a porta da cozinha se abria e cortando
caminho pela garagem coberta, com um sorriso largo no rosto, vinha ela abrindo
os braços e dizendo nossos nomes, limpando as mãozinhas no avental e pedindo
desculpas pela bagunça, bagunça essa inexistente porque o chão estava sempre
limpo e encerado, não havia louças na pia nem no escorredor, nem pó nos móveis
ou vidros sujos, tudo estava no devido lugar.
Havia um galinheiro no quintal e também alguns pés
de couve, além de um pé de ameixa e um abacateiro. Suculentas, samambaias,
roseiras e as flores-de-maio. Havia sempre uma dupla de cachorrinhos a nos
receber no portão, pulando, lambendo, chorando de alegria. Havia uma gatinha
dorminhoca e fujona. Havia sempre uma criança batendo palmas no portão para
comprar um geladinho. A plaquinha estava pendurada no poste e ainda hoje não
encontrei geladinho mais saboroso que os feitos por vovó, os industriais são
artificiais e a receita secreta do deleite, ah, foi-se com ela.
Havia sempre um bule com café fresquinho, um
cestinho com pães, uma colherzinha dentro do açucareiro, um pires para apoiar a
xícara, um bolo feito ou comprado no mercado. Havia naquela mesa de madeira
retangular uma senhora de bom coração que atendia por “vó”, para quem o peso da
idade tardava a chegar, a mulher sorridente, invencível, a grande rocha, o eixo
que sustentava o restante da família, o ponto de ligação entre o início e o
infinito.
Era costume olhar para o relógio de parede da
cozinha porque do lado dele havia o calendário do ano vigente, propaganda de
algum estabelecimento comercial daquela região. Escutava as anedotas às vezes
austeras, às vezes engraçadas. Nos dias de sol era hábito sentar-me em um
degrau qualquer e contemplar o céu, acariciar e brincar com os cachorros e
evocar as lembranças de quando eu era uma criança como aquelas que ainda
brincavam na rua porque o tempo e a escolhas acabaram por afastar os corações
até que eles não mais se recordassem do ritmo singular daquelas batidas, até
chegar o dia em que duas antigas confidentes tornaram-se verdadeiras estranhas
uma para a outra e todas aquelas promessas de amizade eterna irem pelos ares.
Havia uma pilha de fotografias, muitas dispostas em
álbuns, outras avulsas em uma caixa de presentes. Naquela cama de casal
nós nos sentíamos em casa e da janela dava para ver o quintal e um pouco das
fronteiras além do muro. Nas mesinhas de cabeceira, cartelas de remédios. Para
estabilizar a pressão, para as dores nas costas, no entanto, mesmo argumentando
que do pique de outrora já não mais desfrutava, ainda assim conservava o frescor
da juventude, posto que os resquícios da mulher bela que foi ainda não haviam
sumido.
A pele do rosto ainda era firme e brilhante, as
ruguinhas eram aquelas inevitáveis, nos lábios um batonzinho rosa, o lápis
desenhava as sobrancelhas finas e embora a briga com a balança fosse uma
constante, a magreza lhe roubaria (como roubou) o charme. O cabelo estava
sempre hidratado, pintado, escovado, na altura dos ombros. As lindas unhas,
pintadas e bem cuidadas, os esmaltes cintilantes e também os escuros, o estojo
de manicure, os diversos acessórios que utilizava, todos organizados.
Havia sempre um bolo, um prato salgado, pés de
couve, o que quer que fosse, para se levar para casa. Havia sempre um tom de
lamento quando chegava a hora de ir. Havia sempre um abraço dentro da casa e
outro já no portão. Havia sempre um aceno amoroso na frente da casa conforme o
carro virava a esquina para pegar a estrada. Havia, no ar, o gancho para uma
próxima vez.
A mãe dela, minha bisavó, viveu mais de noventa anos
e se não fosse pelo câncer, teria chegado aos 100. Se vovó continuasse naquele
ritmo, seria centenária, pelo menos era o que todos pensávamos. A morte batia
nas portas de outros lares e o nome dela parecia relativamente distante no
pergaminho, mas como podemos nos enganar por ilusões?
Dona Morte preparou uma emboscada para vovô e o
relógio de parede parou no exato instante em que ele, do outro lado da cidade,
deu o último suspiro. Após aquele dia, de fato, a rocha desmoronou. Estávamos
todos tão equivocados, embora receássemos que aquilo acontecesse porque
tínhamos alguma noção do quão devastadora poderia ser aquela separação forçada
e inevitável, imposta pelo próprio ciclo da vida.
A subestimada hipérbole antecipou o adeus. O cansaço
abateu-se sobre ela. Onde antes havia tanta vida reinava aquele silêncio
constrangido, acuado, resignado. Os móveis foram trocados de lugar, mas aquelas
paredes guardavam lembranças insuperáveis e a dor da saudade era maior do que
tudo. O vazio que preenchia o coração dela era grande demais para ser consolado
com frases feitas.
Receber a notícia do diagnóstico pelo telefone foi
um choque. A negação blindou-me. Poderia ser um daqueles casos nos quais os
médicos seriam surpreendidos com um milagre porque minha mãe orou, orou com
todo o coração para que vovó fosse curada, por mais desfavorável que fosse o prognóstico.
Eu sei que
estou morrendo, fia. A dor a consumia, roubando-lhe o apetite, o viço, a dignidade, a
autonomia, o sopro de vida. A leitura da bíblia lhe trazia alento. Para um Deus
capaz de tantas maravilhas por seus queridos filhos, não custaria tanto curar
um tumor raro e permitir que uma boa senhora ainda pudesse conhecer, abraçar e
amar a obra mais bela que construiu: a família.
As injeções de morfina prolongavam o sofrimento com
a promessa de aliviar as dores, mas o corpo enfraquecido ainda assim resistia
porque todas as vezes em que a vida lhe derrubou, conheceu dentro de si a força
para se reerguer e dizer em voz alta ao medo que ela era mais forte do que ele.
Agora o próprio medo assumia uma postura mais humana
na abordagem, tomava a face de seu amado e lhe sussurrava para não temer, pois
a dor estava próxima de chegar ao fim, que chegava a hora de descansar. O
paradoxo era mais do que um contraste, era o melhor narrador da história. Por
um lado, não era justo alguém ser devorado por um tumor agressivo e perverso,
triunfante por ser incurável. Por outro, a revolta pelas orações cuja resposta
destoou das expectativas, a sensação gritante de impotência diante de um porquê
sem explicação, a tristeza pela despedida que não aconteceu.
Quando vovó, mesmo debilitada pelo luto, acenou para
nós naquela última e emblemática visita, não disse adeus enquanto sorria e via
o carro dobrar a esquina como fazia toda vida, mas as páginas da vida redigiam
o texto e buscavam a melhor entonação para aquela despedida.
Não quisemos chorar na frente de mamãe, ela estava
devastada, vivendo um momento desafiador na segunda revolução de Saturno,
dizendo adeus à última pessoa fora de nossa casa que a amava
incondicionalmente. Tentamos transparecer que poderíamos suportar aquela grande
e irreparável perda sem agigantar o já inevitável sofrimento.
A casa da minha avó sempre foi um elemento
relativamente comum em meus sonhos, hoje é ainda mais. Às vezes vejo aquele
quintal verde e da casa transborda alegria, ela continua ativa e linda, há
música tocando, há festa, há alegria, há confraternização, há café quentinho,
há bolos saborosos na mesa da cozinha, há cachorrinhos recebendo as visitas no
portão, há crianças batendo palmas para comprar geladinho, há abraços longos,
sinceros, perfumados, há amor.
Na configuração original daquele lar, os únicos
degraus eram aqueles que separavam a porta da frente do quintal, mas nos meus
sonhos a casa é tão grande quanto o coração dela, há vários andares, há
frondosas árvores ladeando a propriedade, há velhos conhecidos deixando as
rusgas de lado para retomar contato, há sorrisos, há lugar para todos, há
flores-de-maio desabrochando em pleno verão, há balanços para sentir frio na
barriga, não há relógio algum no pulso nem na parede, ninguém olha o celular,
ninguém se importa em contar as horas, porque quando se vive um momento
especial, o presente é o centro do universo e a maior de todas as dádivas.
Só sei que é tarde quando olho a hora no
decodificador e ainda meio zonza me dou conta de que apenas sonhei e enquanto
ocupo as horas para não padecer à melancolia, reflito sobre tudo que gostaria
de ter-lhe dito e nunca consegui, sobre o momento presente, sobre quem continua presente, sobre um meio de demonstrar todo o meu amor de modo a nutrir no
coração a certeza de que o amor é um laço que nem a morte destrói.
Vó, espero que o céu seja um bocadinho parecido com
o que vejo nos meus sonhos, espero que esteja bem e saiba que sempre te amei e
amarei. Quando nós aqui lamentamos a sua ausência, os céus festejaram a chegada
de alguém especial e então você pôde dançar sem medo das limitações,
reencontrar pessoas que partiram antes e tantas saudades deixaram, pôde, enfim,
encontrar-se com Deus. Meu conforto se sustenta justamente nessa certeza tão
firme de que Deus te acolheu bem e dia a dia renova as forças daqueles que
ainda precisam prosseguir.
Pode ser que nunca mais o carro dobre a esquina e
vejamos você abrir a porta para nos receber, mas quando eu chegar aos céus
espero muito a encontrar, ou melhor, reencontrá-la, para que quando nos
aproximemos, tenhamos a confiança de que o tempo foi apenas um conceito
relativo, uma provação para fortalecer o afeto, o caráter, porque quando esse
momento chegar, terão ficado para trás também as dores, angústias e fraquezas
humanas, terá chegado a hora de abraçar e regozijar e caminhar rumo a uma nova
era, rumo a novos sonhos, rumo a novos desafios... porque apenas o corpo
expira, nossa alma permanece porque é composta por amor e o amor nunca morre,
nunca, nunca, nunca morre.