Mary Recomenda | Minha vida de menina - Helena Morley

Segunda versão da identidade visual do Mary Recomenda


Minha Vida de Menina é boa, sim. Você é que não tem escuta

Por Mary Luz | Resenha afetiva nos Cadernos de Marisol

Sexta-feira combina com Mary Recomenda. Por isso mesmo, caprichei na recomendação e trouxe a sugestão de uma obra que conheci meio ao acaso já faz alguns anos  Inclusive, já sofri hate por isso, mas não me importo. Sabemos bem que isso tem nome: espelhamento. A pessoa joga nas nossas costas tudo que ela é, esperando convencer.

O título simples prometia muito mais do que entregam os enredos enfeitados da literatura pré-fabricada. Helena Morley não quer ser admirada — quer apenas viver. E é justamente por isso que muita gente não entende a grandeza do livro: estão acostumados a personagens que gritam, não a meninas que observam.

Contexto histórico 


O diário de Helena é um mergulho afetivo no cotidiano da vida no interior de Minas Gerais no final do século XIX. O Brasil ainda engatinhava como República, mas já colecionava hipocrisias sociais, estruturas patriarcais e silêncios que as mulheres eram forçadas a engolir. 

E é nesse cenário que a jovem Helena — esperta, questionadora e absolutamente espontânea — nos conduz pelas miudezas do dia a dia: a escola, os trabalhos domésticos, os adultos cheios de contradições, a fé e a dúvida. Tudo com um olhar crítico, cômico e profundamente humano.

Muita gente não percebe, mas esse diário tem mais subversão do que aparenta. A forma como Helena trata a tia, o jeito como questiona o que é “virtude”, o modo como comenta as injustiças disfarçadas de costume — tudo isso está ali, entre linhas. Só que para enxergar, é preciso ler com escuta. E tem gente que só lê esperando conflito, grito, trauma exposto. Helena escreve com silêncio, e por isso passa despercebida pelos que têm urgência de espetáculo.

Sim, há passagens que mencionam pessoas escravizadas ou ex-escravizadas, e elas refletem os limites de consciência de uma sociedade que ainda naturalizava o racismo. Entretanto, é importante lembrar: Helena escreveu seus diários na juventude, no fim do século XIX, numa época em que esses debates não existiam como hoje. Ainda assim, seu testemunho tem valor histórico. Justamente por não tentar disfarçar ou reescrever a realidade, ela nos oferece um retrato nu e cru das contradições de seu tempo.

Elizabeth Bishop em Diamantina

Curiosamente, muitos anos depois, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop visitaria Diamantina e se encantaria tanto com o cenário descrito por Helena que escreveu sobre isso no seu livro Uma Cidadezinha Distante, que, aliás, serve como complemento e também como outra indicação especial para quem gosta de mergulhar fundo no que lê.

Bishop também leu Minha Vida de Menina — e gostou. Reconheceu naquela menina o olhar observador, sensível e cheio de sutilezas que poucos leitores são capazes de alcançar. Foi além: traduziu a obra para o inglês.

Morley e Bishop se encontraram por intermedio do também célebre escritor Manuel Bandeira. Imaginem que encontro de milhões, duas mulheres maravilhosas que contribuíram tanto para a literatura e o nosso ícone modernista. 


"Não voltei a Diamantina, nem jamais tive muita vontade de voltar. Embora fosse uma cidadezinha distante, triste e empobrecida, gostei muito dela, talvez por parecer muito próxima da Diamantina da infância de Helena, como se o texto saísse das páginas do diário e voltasse à vida, tal como antes. Mas sou supersticiosa com relação a 'voltar' a lugares: eles mudam, nós mudamos, até mesmo o clima pode ter mudado." (BISHOP, 1970)

Merecia uma continuação 

Infelizmente, nunca houve uma continuação dos diários. Dizem que parte do motivo foi o fato de que o futuro marido de Helena já aparecia nas páginas da menina — e talvez isso tenha constrangido sua publicação posterior. Uma pena. Porque ver o olhar daquela mesma menina atravessando os desafios da vida adulta teria sido um retrato raro da sensibilidade feminina brasileira no pós-abolição.

Impressões 


Helena Morley não dramatiza, não quer lição de moral, não está preocupada em ser modelo. Ela está escrevendo pra si, e nos oferecendo um retrato puro e corajoso da menina que foi. Em vários momentos, divide com a irmã Luísa risadas em situações socialmente “inapropriadas” — e ali está o riso que escapa da rigidez, a ternura escondida nas brechas do cotidiano vigiado. 

Quem não consegue reconhecer isso talvez precise rever o que espera da literatura. Talvez nunca tenha tido uma vida interior rica o bastante pra entender o valor das rotinas, das perguntas internas, dos incômodos sutis. 

Eu, que fui uma menina que pensava demais, encontrei em Helena uma companheira de jornada. E afirmo: Minha Vida de Menina é um livro que exige escuta, sensibilidade e humildade de leitura. Quem não entendeu, não é porque o livro falhou — é porque não se viu capaz de escutar uma menina escrevendo com verdade. 

O Mary Recomenda de hoje fica por aqui. Muito obrigada pelo carinho e até a próxima edição. A propósito, um passarinho me contou que poderemos ter edições extraordinárias ao longo da próxima semana. Até sempre!


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