Descobri Minha Vida de Menina há alguns anos, movida pela curiosidade e pelo título simples que prometia muito mais do que entregam os enredos enfeitados da literatura pré-fabricada. Helena Morley não quer ser admirada — ela quer apenas viver. E é justamente por isso que muita gente não entende a grandeza do livro: estão acostumados a personagens que gritam, não a meninas que observam.
O diário de Helena é um mergulho afetivo no cotidiano da vida no interior de Minas Gerais no final do século XIX. O Brasil ainda engatinhava como República, mas já colecionava hipocrisias sociais, estruturas patriarcais e silêncios que as mulheres eram forçadas a engolir. E é nesse cenário que a jovem Helena — esperta, questionadora e absolutamente espontânea — nos conduz pelas miudezas do dia a dia: a escola, os trabalhos domésticos, os adultos cheios de contradições, a fé e a dúvida. Tudo com um olhar crítico, cômico e profundamente humano.
Muita gente não percebe, mas esse diário tem mais subversão do que aparenta. A forma como Helena trata a tia, o jeito como questiona o que é “virtude”, o modo como comenta as injustiças disfarçadas de costume — tudo isso está ali, entre linhas. Só que pra enxergar, é preciso ler com escuta. E tem gente que só lê esperando conflito, grito, trauma exposto. Helena escreve com silêncio, e por isso passa despercebida pelos que têm urgência de espetáculo.
Sim, há passagens que mencionam pessoas escravizadas ou ex-escravizadas, e elas refletem os limites de consciência de uma sociedade que ainda naturalizava o racismo. Mas é importante lembrar: Helena escreveu seus diários na juventude, no fim do século XIX, numa época em que esses debates não existiam como hoje. Ainda assim, seu testemunho tem valor histórico. Justamente por não tentar disfarçar ou reescrever a realidade, ela nos oferece um retrato nu e cru das contradições de seu tempo.
Curiosamente, muitos anos depois, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop visitaria Diamantina e se encantaria tanto com o cenário descrito por Helena que escreveu sobre isso no seu livro Brazil. Bishop também leu Minha Vida de Menina — e gostou. Reconheceu naquela menina o olhar observador, sensível e cheio de sutilezas que poucos leitores são capazes de alcançar.
Infelizmente, nunca houve uma continuação dos diários. Dizem que parte do motivo foi o fato de que o futuro marido de Helena já aparecia nas páginas da menina — e talvez isso tenha constrangido sua publicação posterior. Uma pena. Porque ver o olhar daquela mesma menina atravessando os desafios da vida adulta teria sido um retrato raro da sensibilidade feminina brasileira no pós-abolição.
Helena Morley não dramatiza, não quer lição de moral, não está preocupada em ser modelo. Ela está escrevendo pra si, e nos oferecendo um retrato puro e corajoso da menina que foi. Em vários momentos, divide com a irmã Luísa risadas em situações socialmente “inapropriadas” — e ali está o riso que escapa da rigidez, a ternura escondida nas brechas do cotidiano vigiado. Quem não consegue reconhecer isso talvez precise rever o que espera da literatura. Talvez nunca tenha tido uma vida interior rica o bastante pra entender o valor das rotinas, das perguntas internas, dos incômodos sutis.. Ela está escrevendo pra si, e nos oferecendo um retrato puro e corajoso da menina que foi. Quem não consegue reconhecer isso talvez precise rever o que espera da literatura. Talvez nunca tenha tido uma vida interior rica o bastante pra entender o valor das rotinas, das perguntas internas, dos incômodos sutis.
Eu, que fui uma menina que pensava demais, encontrei em Helena uma companheira de jornada. E afirmo: Minha Vida de Menina é um livro que exige escuta, sensibilidade e humildade de leitura. Quem não entendeu, não é porque o livro falhou — é porque não se viu capaz de escutar uma menina escrevendo com verdade.
E sinceramente? Ainda bem. Porque Helena nunca quis plateia. Ela quis apenas ser lida por quem soubesse olhar.
Com carinho,
Mary
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