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É possível viver sem AMIGOS?

 

Escrito originalmente em 2014, este texto reflete um período em que explorei de forma mais intensa os significados de amizade e solidão. Ele fez muito sucesso no meu blog Perguntas, prerrogativas e provocações, e acredito que sua mensagem ainda ressoa nos dias de hoje. Por isso, decidi compartilhá-lo novamente, intacto, para que novos leitores possam refletir e talvez se identificar com essas palavras.

Platônico II

Olá, amigas e amigos do OCDM. Temos mais um texto de 2010 aqui, espero que vocês gostem de rever essas relíquias que aparecem no blog ocasionalmente, pois sinto muita satisfação em cuidar desse cantinho como se fosse o meu jardim, o meu oásis. 

Os ímpares e a paciência


Uma virtude deveras admirável é a paciência. Não somos dados a longas esperas, vivemos na era do “é para ontem”, onde pessoas, sentimentos e tendências são descartáveis, estamos sempre na luta para não ficarmos para trás, não queremos ser piegas, uma piada sem graça.

O que diz um beijo no olho?


"Os cílios dedilhados aceitam a aproximação dos lábios inspirados. Os olhinhos estão fechados, mas as sinestesias estão mais intensas do que nunca. A revolução se dá na direção certa: atingir o coração de quem se ama." 
— Mary  🪻

CONFISSÕES DE LALY 10 ANOS | O REENCONTRO (a releitura do texto que inspirou a publicação da web novela)

 Olá, queridos amigos e amigas! Tudo bem com vocês? Espero que sim. *-*
Dez anos atrás, numa terça-feira ventosa, esta que os escreve abriu o bloco de notas e, inspirada pela proximidade do Dia dos Namorados, decidiu escrever uma nota aleatória da Laly, e desta simples tentativa vieram outras e as ideias encontraram um fluxo harmonioso para se manifestarem. Com isso, pensei, seria legal dar uma chance para uma novela que destoava totalmente de DDP. E foi a melhor decisão que tomei. Espero que gostem dessa releitura porque a escrevi com o coração, tendo de base a versão original. Apertem os cintos e entrem no clima. (= #ConfissõesDeLaly10Anos #EscritoraVirtualSim #ComOrgulho 

O final feliz

    


     O final feliz é repleto de dias registrados com distintas caligrafias, de temporais nos finais de tarde, noites sem estrelas e manhãs agradáveis de sol. Ponto final de uma história, argumento de outra, utopia para os descrentes, distante para aqueles que deixaram de enxergar com o coração em virtude das sucessivas desilusões porque o sofrimento transforma bastante a percepção que alguém tem sobre qualquer que seja o assunto em pauta. 

    O que dirá de um amor, de um amor chega ao fim? Era amor ou apenas medo de ser gente grande? A busca incansável por uma utopia? Constantes ciclos repetitivos nos quais a fé diminui à medida que a ferida cresce de tamanho? O inalcançável desejo de quem apenas quer encontrar uma mão para segurar quando o mundo virar-lhe as costas?

    O argumento do amor está interligado com a verdade, ambos caminham de mãos dadas. Uma análise de consciência feita com sinceridade pode responder a essas (e outras) questões. O amor nasce num terreno fértil, que aceite as transformações que sobrevirão, que durante os mais duros obstáculos prevaleçam os valores edificantes. Esse amor perdura pela posteridade adentro, o restante não passa de brincadeiras de mau gosto, fazendo uso indevido do nome dele.

    A eternidade, sob esse viés, é tecida conforme as linhas avançam e preenchem páginas inteiras, assim também é com a estrutura que sustenta o que quatro mãos em consenso resolveram construir, cientes de todos os entraves que poderiam enfrentar durante o referido período. Se o amor for o alicerce do empreendimento, ressignificar será um vocábulo bastante popular para dois corações dispostos a recomeçarem, reatarem, realinharem, reconsiderarem, realizarem.

    Haverá o dia em que lágrimas cairão, quando o barco aportar, levando a pessoa amada embora. O amor não acaba no último beijo, no último abraço nem no último aceno, não enquanto for uma estrela a iluminar suas noites mais escuras. Do tamanho do horizonte, do céu, do universo, a grandeza fica a seu critério. Não é uma dor que se supere, mas se tolere, para manter acesa a chama do legado, porque o reencontro tem um momento certo para acontecer. 

    Já vi pessoas dizendo que “superaram amores” quando, na verdade, nunca amaram, nunca fariam nenhum sacrifício pelos rostinhos bonitos em quem dão match e descartam sem qualquer piedade ou empatia, posto que tabu hoje é se apaixonar, bacana é dar vácuo, seguir um monte de gurus que apenas querem enriquecer com dicas prontas, conteúdo suficiente para caber num livro onde a ilustração preencha o restante, haja um designer muito habilidoso para elaborar uma capa atraente, quando o amor não segue esses protocolos e haja vários modos de amar.

    No fim de um relacionamento abusivo, busca-se reconstruir a dignidade esfarelada, a confiança perdida, superar o trauma de sofrer humilhações, essa fase ruim da vida, mas extraindo dela os referentes aprendizados para se fortalecer. Superar um amor soa incoerente, seria o equivalente a rasgar centenas de páginas escritas com tanto esmero, queimá-las, guardá-las num canto qualquer amontoado de tranqueiras.

    Existe vida depois do final feliz. Existe final feliz enquanto há vida. Existe também a vontade de dizer que os compromissos mundanos delimitam as horas do dia, as estações do ano, as festividades e solenidades, mas não são hábeis para medir o amor em sua totalidade porque não há no mundo cálculo exato para encontrar um valor exato para a plenitude. Existe o meu texto, de quem acredita com todo o coração que a condição propícia para haver um final feliz é que haja um início, o restante, cada história no seu próprio ritmo, ajusta a cadência dos capítulos.

    As ondas quebram durante um solitário passeio pela orla, tantos momentos felizes reduzidos agora ao silêncio. Alguns diriam que a história não teve um final feliz porque uma das partes se foi, entretanto, é justamente nesse ponto dolorido que se encontra o equívoco: o fato de ter chegado ao fim não anula a felicidade vivida, as conquistas, os aprendizados, elementos esses que tornam uma história muito mais bela do que aquelas repletas de palavras rebuscadas.

    O corpo humano expira, quitação pelo grato empréstimo, entretanto, a alma que abrigamos enquanto terrenos, essa é imortal, portanto, o verdadeiro amor, esse dos finais felizes, evolui, transcende. Cumprida a missão, desafios maiores estão a caminho. Caso eu precise te lembrar, viver um final feliz foi um deles.


Curitiba, 7 de dezembro de 2020.

Às vezes sonho que tem alguém, em algum lugar desse mundo, que sonha com o mesmo que eu, alguém que gostaria de encontrar alguém como eu.



        Às vezes, quando não consigo dormir, fecho os olhos e imagino como deve ser abraçar alguém que te faz se sentir protegida, amada, que te aquece o corpo e a alma, como deve ser beijar alguém e sentir que o coração acelera e o desejo queima, pulsa; olhar dentro dos olhos desse alguém e compreender a razão dos desencontros do passado e deixar que alguém me enxergue também, cuidar, porém também deixar alguém cuidar de mim.
        Às vezes sonho que tem alguém, em algum lugar desse mundo, que sonha com o mesmo que eu, alguém que gostaria de encontrar alguém como eu.

Diga que me ama (cap. 10) ele fala


        Você já está nos braços de outra pessoa, amando e se deixando amar. Vocês formam um belo par. Ainda assim, dói. Meus sentimentos estão bagunçados. Alegro-me por saber que depois de todas as desilusões que lhe furtaram a fé, seu coração te guiou com a razão e as portas se abriram para que alguém adentrasse e cuidasse um pouco dessa alma incrível. 
Por outro lado, não serei hipócrita: eu queria ser essa pessoa que te proporciona tantos sorrisos, com quem você imagina um futuro ao lado, ainda que não possa mudar os fatos. Te ver sem poder te tocar, te sentir, ter qualquer esperança de te provar que meu apreço sempre foi verdadeiro, me martiriza sobremaneira. Preciso aceitar que agora você é meu maior impossível.
Queria te abraçar sem pressa e deslizar as mãos pela sua cintura, deixar os dedos correrem por entre os seus cabelos e te beijar. Eu ainda me lembro do seu gosto, deixou saudades no céu da boca. Seu cheiro na fronha do travesseiro, as pontas dos dedos curando feridas que a insegurança encobria com camadas de vaidade. Hoje te enviei aquela música, talvez tenha colocado tudo a perder, porque as mágoas não são muralhas que impedem o contato. Lágrimas não choradas nos surpreendem. Somos tão francos com o papel, libertamos nossos pesos conforme as páginas avançam.
Você se lembra de quando demos nosso último beijo? Sabíamos que seria o derradeiro? Havia algum sinal que não interpretamos muito bem ou fomos vítimas de uma sucessão de desencontros?
        Não quero te constranger te perguntando a respeito da música porque ela, por si só, diria muito mais do que eu, em minhas tentativas pífias de escrevinhar uma resposta digna. Melhor acreditar que te marquei por saber que The Corrs é uma das suas bandas favoritas. Poucos têm conhecimento de que você ainda guarda com carinho os CDs e discos ganhados e comprados. Forgiven, not forgotten é um deles. 
        Ora bolas, você está comprometida. Quase dez anos se passaram desde o nosso último beijo. Seguimos o curso de nossas vidas, nos permitimos beijar outros lábios, dormir em outros braços, encarar desafios e provações. O tempo não parou. Nossas escolhas nos levaram a estar onde estamos hoje. Se decorresse o inverso, a abnegação seria sua prova mais de pura de amor. 
Você viu Yasmin nos braços de outro rapaz e mesmo com o coração quebrado por saber que eles se envolviam enquanto vocês estavam juntas, seguiu em frente e decidiu cuidar um pouco mais de você mesma, não focou sua energia em planinhos ridículos de vingança.
       Ainda me lembro dos seus longos cabelos castanhos cobrindo a cintura, daquele vestido de verão branco com estampas florais e manga ciganinha que você usava naquele happy hour de ano-novo, do colar cujo pingente era um coração vazado, de seu sorriso também. 
Você me disse uma vez não se sentir bonita. Isso ainda se dá por você nunca ter enxergado sob as lentes de quem a ama. Se fosse capaz disso, se surpreenderia. Porque me surpreendi com a intensidade das batidas do meu coração quando nossos olhares se encontraram naquela mesa cheia de gente risonha e paqueradora e nos cumprimentamos pela primeira vez.
        Você estava desacompanhada e não usava anel de compromisso. A noite era longa. Amigos se reuniam e colocavam a prosa em dia. Suas amigas estavam trocando amassos com os companheiros enquanto você conversava e parecia até um pouco deslocada, não exatamente por não ter um par, mas porque não estava em seu lugar.
        — Está esperando alguém?
        Você fez que não com a cabeça.
        — Tudo bem se eu me sentar aqui?
        Você me perguntou se eu era quem era, confirmei com um sorriso e então me lembrei de uma moça bonita a qual alguns amigos meus comentavam, que apesar do talento não ascendia na profissão porque não dormia com o patrão. Não se aborreça comigo, mas era o papo que rolava entre amigos em comum, que a Cláudia Barreto só se tornou âncora do TVTV News porque saía com o Sr. Velloso, enquanto você, que havia estudado por quatro anos, feito pós-graduação e vários cursos livres, era preterida, apesar de talentosa.
        Essa moça bonita era você, também conhecida por não dar moral a ninguém.
As línguas maldosas diziam que você almejava ser à preferida do velho Velloso e por isso não assumia nenhum relacionamento. Outros já questionavam sua orientação sexual, embora naquela época você não falasse a respeito, fosse por medo de portas fechadas ou por separar vida pessoal da profissional com a maestria que poucos de nós conseguimos.
        — Pois é, tenho que estar de pé às sete. — Você deu de ombros. — Estou de plantão, por isso não vou beber nem um golinho, só vim dar um abraço no pessoal…
        — Não vai nem acordar para ver os fogos?
        — Talvez… — Você me respondeu, sorridente, e a conversa fluiu tanto que, por mais que seus sinais não fossem tão claros, a ideia de dormir com você se agigantou dentro de mim. Se você também curtia viver intensamente sem problematizar tudo, trato feito.
        — Depois do plantão, você vai ter uma folguinha? — Arrisquei, porque tudo que poderia ouvir de você era um não e até onde sei, ouvir não faz parte da vida. Pior do que ele, o nada, o nada que poderia ter sido tudo, a teia destrutiva da suposição.
        — Não. Sigo na labuta. Não paro nunca. — Você me respondeu.
        — Nem gripe te derruba? — Brinquei.
        — Só gripe e olha lá.
        A primeira impressão nem sempre é a mais correta, mas a sua desmontou todas aquelas teorias da conspiração que pipocavam a seu respeito. 
Naquele instante, vi uma jovem jornalista focada batalhando para construir uma reputação ilibada no trabalho, dedicada, entretanto, esgotada e ferida pela total falta de reconhecimento, sem oportunidades reais de ascensão.
Gozei desse privilégio, não posso negar; só agora me dou conta disso, de que o caminho que você trilhou para estar onde está, foi muito mais repleto de buracos, trechos íngremes e curvas perigosas. No entanto, para a felicidade geral, você nunca se intimidou nem com a pior das tempestades.
        — Me passa seu número?
        Meus planos para 2009 eram os de sempre, comuns a todos nós, os clichês que repetimos para que se tornem verdades. Aquele que brotou quando 2008 já se aproximava do derradeiro fim, foi te ver naquele novo ano, te ver nem que fosse uma só vez, quiçá a última.
        E você me passou seu número, aproveitando o ensejo também para se despedir da turma. Provavelmente até hoje você pensa que flertei com outra moça e passei a virada do ano acompanhado.
       Pouco depois que você saiu, eu poderia, sim, ter entornado vários drinques e me divertido com outra. Em vez disso, voltei para casa e passei a virada vendo televisão, olhando para o seu número gravado na minha agenda e pensando se seria muito atrevimento te deixar uma mensagem de feliz ano-novo.
        O tal do “escrevi, mas não tive coragem de enviar”.

Diga que me ama (cap. 2) - por Ceci



Amar o amor é muito diferente de aprisioná-lo em uma convenção atulhada de regras quase sempre egoístas, egocêntricas e retrógradas. Próxima dos 30 anos, as comparações com primas da mesma idade que já haviam deixado a vida de solteiras para construir famílias era constante. Olhares de piedade vindos das tias mais velhas que me pediam para “não perder a esperança”, como se o fato de não estar comprometida nos moldes mais tradicionais me condenasse a uma existência sem brilho.
Eu já não era mais uma foca na redação. Trabalhava arduamente e os imprevistos combinavam tanto quanto meu figurino. Às vezes preterida, às vezes esperançosa. A carreira era o foco central da minha vida, afinal, dela vinha (e ainda vem) o pão de cada dia. Vinha lutando para um propósito maior do que me sentar em uma bancada e passar dez ou até vinte anos (isso com sorte) fazendo o mesmo, muitos colegas nossos pereceriam por tudo isso. 
Eu buscava um sentido no ofício, um meio de me realizar como pessoa e compartilhar com a comunidade o aprendizado diário nas atividades que executava dentro e fora do ambiente de trabalho.
Meu coração, se assim pode dizer, estava ocupado demais para joguinhos estúpidos e pessoas que atravancassem meu caminho com possessividade e egoísmo. Não posso dizer que sempre sonhei em me casar de véu e grinalda e brincava de casinha porque seria uma tremenda hipócrita. Estava sempre metida nas partidas de futebol de rua com os meus irmãos, batendo figurinha, construindo carrinho de rolimã, passando longe de ser aquela menininha-padrão que toda mãe sonha em colocar frufru no cabelo e vestidinho com bainha de renda. 
Eu herdava a roupa dos mais velhos — o que podia ser aproveitado, sentia-me confortável, escaramuçando até a Vó Hilda gritar da janela do apartamento: “pra dentro, cambada!” e vivia cada dia de uma vez, sem me preocupar com o amanhã ou com o que pensariam de mim, eu estava ocupada demais me divertindo.
Tudo mudou quando eu estava com doze anos e meio. Eu já notava algumas mudanças no meu corpo, sobretudo em relação à estatura, que impressionou, porque as outras são irrelevantes ao contexto. Teria futuro enquanto levantadora, se assim desejasse, altura eu tinha. Poderia pensar em jogar basquete também. 
As transformações que encerrariam minha infância seriam mais cáusticas, profundas e inquestionáveis.
A família sempre foi o meu grande pilar. Não era novidade para ninguém que os parentes promovessem uma grande reunião no Natal e no ano-novo, oportunidade para os primos se reverem, colocarem as conversas em dia e brincarem até adormecerem nos colchões dispostos na sala do apartamento de vovó. 
A preparação começava cedo, com a Vó Hilda assando os perus e a Tia Zuleica, minha madrinha, correndo no mercado para comprar algum ingrediente que faltou, enquanto o Vô Ariosvaldo preparava o salão de festas do prédio porque a maioria dos moradores viajava durante o recesso.

****

1994 foi um ano bastante difícil e movimentado. Tivemos a perda do Senna, devastadora para o meu pai e meus irmãos mais velhos que apreciavam a Fórmula 1 até aquele sombrio primeiro de maio.
Em julho, com ou sem tetra, meu aniversário estava garantido, mas depois daquele pênalti que rendeu à seleção canarinho o quarto título mundial, não me importei em ser “esquecida”, meu aniversário foi dois dias antes. 
Triste foi perder minha cachorrinha Susi, uma vira-lata cor de caramelo, minha parceira desde os 4 anos. Ela se assustou tanto com os foguetes e rojões que fugiu do festerê no salão de festas, foi encontrada esmagada debaixo da roda do carro de um amigo do meu pai.
Esperava que 1995 fosse melhor, mesmo estando naquela fase em que quebraria todos os espelhos do mundo sem me importar com as superstições relacionadas. Fiz questão de usar o cropped branco de rendinha e a saia rodada cuja barra ficava a dois dedos das minhas coxas finas. Era presente da Dinda, não podia fazer desfeita.
Meus irmãos me achincalhavam dizendo que minhas pernas pareciam duas varetas. Eu estava medindo quase o mesmo que o papai e só não cheguei a ser modelo de passarela, apesar dos inúmeros clamores, porque nunca quis parar de comer e ser um cabide humano, descartado tão logo aparecesse outra de treze que contemplasse às expectativas. Zuleica me dizia que aquela fase de insegurança, angústia e inadequação daria espaço para algo muito maior, para a minha percepção real do que significava ser mulher.
Com a Dinda eu era totalmente transparente. Pelo fato de meu pai ser médico e minha mãe enfermeira, minha madrinha era uma figura de autoridade com quem podia desabafar naqueles tempos em que tinha tantas dúvidas, tantas curiosidades, tantos desejos. 
Ela morava com os pais para cuidar deles, porém trabalhava e custeava os próprios caprichos. No meio daquele ano pretendia conhecer Machu Pichu, no Peru, e queria me levar junto, com a condição de que eu me comportasse bem em casa e tirasse boas notas na escola.
Nosso último abraço sempre terminava com um “até mais” depois que eu pedia a bênção. Não tinha nenhum indício de que seria o último. Ela não tencionava nem por um segundo dar cabo da própria vida, amava acordar toda manhã, acender incensos para fazer suas preces matinais e nunca saía de casa com a barriga vazia. Vovô reclamava do aroma de mirra que se expandia por todo o apartamento. Para agora, Zuleica seria um exemplo de mulher empoderada que jamais precisou de um namorado ou marido para deixar um legado.
Falecer aos 42 anos era impensável. Jovem demais. Machu Pichu a esperava. Aquele ano e tudo o que perderia. Eu precisava dela mais do que nunca. Eu a amava mais do que a minha própria mãe. Muito, muito mais.
Quando acordei naquele fatídico primeiro de janeiro de 1995, lá por volta do meio-dia, escutei a choradeira na sala. Pensei que Drica, minha irmã caçula e pimentinha, havia aprontado das dela. Da última vez que bancou a engraçadinha, levou quatro pontos na testa, mas Adriana, de cócoras ao lado do sofá, observava aquela movimentação tensa com os olhos negros, bem arregalados.
— Que ano! — ironizou meu pai. — A Zuleica morre assim e agora a mamãe vai parar no hospital.
— E queria o quê, homem? Que sua mãe comemorasse a perda da Zuleica?
Mamãe me viu pelo corredor e a expressão tensa em seu rosto tanto poderia ser uma reprimenda em relação ao meu comportamento, como um sinal para o tal do “precisamos conversar”.
Minha madrinha tinha mania de limpeza, nunca dormia sem guardar toda a louça, por mais que vovó insistisse que daria conta de tudo pela manhã. Zuleica se angustiava com louça suja e fora do lugar, chão cheio de migalhas e vasos de lixo transbordando.
Meus avós costumam rezar o terço antes de dormir. Eram católicos fervorosos. Se tivessem dormido tão logo os convidados se despedissem, não ouviriam o estrondo vindo lá da cozinha. Foi um ataque cardíaco fulminante, igual ao da personagem de uma novela que passou no ano anterior e a qual amávamos muito.
Saí de casa para desmentir minha mãe e por mais que apertasse a campainha do apartamento dos meus avós até o dedo indicador ficar roxo, ninguém me atendia. 
Quando notei que a caravana voltava não para celebrar e sim para lamentar, fugi pela saída de emergência e corri até onde minhas pernas de gazela desengonçada suportaram, queria que meu coração parasse também.
Viver havia perdido todo o sentido.
Naquele dia, perdi completamente a noção das horas, me escondi na copa de um pé de ameixa que não ficava muito longe do complexo residencial onde meus avós e a Dinda residiam, não porque fosse indiferente à dor dos demais, mas porque precisava daquele momento comigo mesma. Não queria ver Zuleica presa a um caixão escuro, todo fechado. Tinha ciência de que não poderia passar o resto dos meus dias escondida e que não queria voltar para casa.
A morte da minha madrinha abalou as estruturas emocionais de todos. Vovó teve várias crises de hipertensão durante o sepultamento da filha do meio e meus pais sofriam porque tinham noção do efeito dominó. Meus irmãos lamentavam o falecimento de uma tia próxima e querida, contudo, não a amavam como eu a amava.
Tudo perdeu a graça: comemorar aniversário, brincar com as outras crianças na rua, até mesmo estudar. Só não repeti de ano, seria uma humilhação ficar atrasada em relação aos meus amigos, por mais que não sentisse vontade nenhuma de interagir com ninguém e em alguns momentos carregasse a culpa por não ter forças para superar a perda da pessoa que mais me amava no mundo.
Meus pais me amavam, todavia Drica, por ser a filha mais nova, recebia mais atenção. No outro extremo o Sérgio, o primogênito, que estava em ano de prestar vestibular e seria o primeiro Paternostro da geração a terminar os estudos regulares.
Só de ver a chamada do Réveillon do Rubão na televisão eu já entrei em pânico. A família tomou a decisão de manter as tradições, mas a Cecília de um ano antes não era aquela que surrupiou uma garrafa de bebida destilada e uma cartela dos comprimidos que meu avô utilizava para manter a pressão arterial em níveis estáveis.
Pela primeira vez na vida não me interessava nem um pouco em receber um ano, escolher roupa branca ou fazer penteado especial. Aquele que se passou como um borrão na memória não deixou saudades. Primeiro de janeiro sempre traria consigo a lembrança de uma dor que nunca passou por completo.
 Ainda hoje não sou simpática ao ano-novo, motivo pelo qual preferiria trabalhar para poder dormir durante a queima de fogos e ficar quase sozinha numa redação vazia e carente de grandes reportagens, posto que salvo alguma tragédia ou evento político, os primeiros dias de janeiro costumam ser pouco movimentados.
Despertei numa cama de hospital, vendo meus pais e irmãos se controlarem para não chorar. Um médico, amigo de longas datas do meu pai, desconfiou de tentativa de suicídio, no entanto, ninguém queria falar sobre aquele assunto tabu e me encher de perguntas. 
Papai sempre diz que quem me salvou foi Drica, pulando na minha cama para me acordar e ver a queima de fogos. Ao notar que eu não reagia, puxou as cobertas, gritou na minha orelha, puxou meu cabelo e, aos gritos, chamou meus progenitores, esperando que eles me dessem uma bronca por dormir na hora da virada.
Dez anos atrás, numa balada de ano-novo, conheci você…

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