Renata e eu sempre percebemos que Monique era um garoto nascido no corpo de uma garota.
Em razão dos conflitos anteriores ao nascimento da primogênita, as paredes do quarto não foram pintadas de rosa e os itens decorativos selecionados a fim de transformar o ambiente acolhedor para um bebê — independentemente do sexo dele, apenas o enxoval, presente de nossos amigos em comum, foi cor-de-rosa.
Mais tarde, quando Monique começou a engatinhar, balbuciar e explorar as coisas, chorava quando ganhava uma Barbie e queria os brinquedos que ficavam na seção destinada aos meninos nas lojas. Eu, que sempre me senti em casa ao encontrar itens colecionáveis de super-heróis, achei curioso o fato de minha menina não revirar os olhos quando dormia no quartinho que lhe preparei e contava histórias do Homem Aranha.
Monique e eu combinamos de assistir Os Vingadores no cinema. Ela nunca foi lá muito fã de gritaria e aglomerações, mas quando valia a pena, suportava tudo. E era o caso. Fiz questão de levar travesseiros, cobertores e gostosuras, havíamos acompanhado todos os outros longas-metragens, tínhamos nossos palpites e expectativas e embora Nick saiba que seu pai não foi tão legal com a sua mãe num momento delicado, disse que me ama, e assim como você, não é todo dia que ouço um “eu te amo”.
Em janeiro, para Heloísa não se sentir preterida, planejo assistir Frozen 2 com ela logo que a animação estrear aqui no Brasil. Apesar de não ser lá muito fã de princesas da Disney, Nick faz parte do time que torce para a Rainha Elsa sair do armário, insiste que seu gaydar apita quando vê a lerigou.
— Ai, pai, está na cara! Encobrir, não sentir, eles não saberão. — Explicou Monique. — Não é o que muitos pais de lésbicas por aí fazem? Dizem ser só uma fase, que tudo bem ser desde que se não se exponha porque não precisa, não sair do armário, blá-blá-blá.
Renata também acredita que Let it go é um hino para se sair do armário. Quando nos reunimos os quatro para interagirmos, nossas conversas à mesa são mais ou menos nesse estilo. Não temos assuntos proibidos e seremos progenitores que dialogam com a prole. Sabemos com quem nossas filhas andam, como se sentem, procuramos apoiá-las em tudo que estiver ao alcance. Estou dando às meninas aquilo que não tive. Amor, compreensão e um ambiente familiar onde elas possam crescer livres e seguras de que nunca as abandonarei.
Qual é o seu palpite? Elsa é ou não?
Renata estava atarantada, havia sonhado que sua menina adoraria ter o trailer da Barbie e brincar de casinha, maquiagem, porém quando encontrava Monique no parquinho, lá estava ela no meio dos meninos, com o cabelo solto, despenteado, à vontade nas camisetas largas e macacões que não tirava por nada.
Quando Monique vinha passar os fins de semana comigo, se divertia à beça jogando videogame e me ensinava alguns macetes, além de se encantar com a minha coleção de super-heróis exposta numa prateleira do quarto que fiz de escritório.
Monique foi uma criança feliz e muito amada, dançou muito ao som do High School Musical, assistiu Camp Rock até decorar todas as falas e por um tempo até tretava com quem era hater da Demi Lovato, amava Justin Bieber e até hoje se lembra de que cada minutinho do show valeu a pena, foi o presente de 10 anos que Renata e eu lhe demos.
Monique e eu passamos horas na fila. Ela não conseguiu conhecer o ídolo, nem tirar uma selfie, mas nem por isso se divertiu menos. Em 2013 eu repeti a dose, quase fiquei surdo com a gritaria histérica das meninas, no entanto, faria tudo de novo por um sorriso de Nick. Aguentaria as filas quilométricas, a cantoria desafinada, a choradeira, tudo.
Tudo vale a pena quando você vê um sorriso de satisfação nos lábios de alguém que você ama sobremaneira.
Lá por volta dos 12 anos de nossa filha, Renata me chamou para uma conversa.
— Ela é muito nova ainda. Essa molecada não tem mais o que fazer do que colocar apelido sem graça nos outros?
— Monique é muito fechada, quem sabe com você ela se abra. — Comentou Renata, com olhos de quem já tinha chorado e não disfarçava a tristeza.
— Se com você ela é fechada, quanto mais comigo. Quero a verdade, ela se assumiu, deu alguma indireta a respeito ou só está assustada porque tem gente desocupada pegando no pé dela?
— Ela se assumiu! O que a gente deve fazer?
— Você não insultou a menina, né? Porque, sejamos sinceros, nós já sabíamos. É fato. Ela nos deu todos os sinais. Não creio que mude muita coisa se ela amanhã ou depois aparecer com um namoradinho também.
— Não, eu não insultei a Nick, só me senti triste porque sei o quanto o mundo é cruel com quem é diferente e me aflige muito a ideia de não poder proteger a Nick em tempo integral de tudo que ela vai passar. — Desabafou Renata, cujos dedos corriam por entre os cabelos volumosos.
— Quando será que vai chegar o dia em que as pessoas começarão a cuidar mais das próprias vidas e parar de palpitar na dos outros?
— Para você, tudo bem? — Quis saber ela.
— Pai sempre sabe das coisas. Pelo menos agora esclareci minha dúvida e digo mais: essa foi a filha que chegou até nós, então cuidemos bem dela.
Ela me abraçou.
— Estamos juntos nessa até o fim!
Monique nunca teve redes sociais usando o nome de registro, nunca se expôs na mídia nem nas homenagens que Rubão e chefa já fizeram para mim e Renata nos programas da RPN e nós respeitamos a escolha dela de cortar o cabelo e vestir as roupas com as quais se sentia à vontade.
No mundo das Fanfics, ela é Nick, tem muitas amizades virtuais e agora aconselha meninas que passam pela mesma situação e nem sempre têm o apoio parental. Ela chora porque não consegue atinar essa maldade que existe no coração dos homofóbicos.
Eu, que não sou gay, consigo encarar o assunto numa boa. Não é questão de outro mundo. Posso não me sentir atraído por outros homens, no entanto, não tenho o direito de invalidar a existência de alguém por não ser homoafetivo.
Agora não há mais problema em falar sobre o assunto porque Monique conversou comigo e com Renata no ano passado e tomou a decisão de fazer a transição female to male. Seria A Vida de Jazz ao contrário. A única diferença é que Nick não gravaria uma série, aquela lá foge de câmeras e microfones como o tinhoso foge da cruz. E só. Pelo desejo ser o mesmo: ser tratada com respeito e ter o direito de não só existir, amar e ser feliz, mas também mostrar que família de verdade é quem te aceita do jeito que você é, independentemente de laços sanguíneos.
Minha família sempre foram os meus amigos.
Para dizer a verdade, Monique é um garoto e pretende se chamar Nicolas. Tudo que pediu foi nosso apoio porque não era nada fácil de se contar, dado o preconceito das pessoas.
Já Heloísa sempre foi vaidosa, comunicativa, expansiva, a típica geminiana que faz amizade até na fila do parque de diversões, que gosta de liderar, não tem um pingo de vergonha de falar em público, dançar e ama tudo que é feminino.
Helô já sabe toda a verdade sobre Monique e lida bem com isso, até já brigou na escola quando defendeu um amiguinho chamado de viadinho pelos valentões da turma.
Quando você me contou sobre Diana, meu coração ficou apertado em razão dos tantos desencontros entre vocês. Ela foi seu primeiro amor, o que implica dizer que você tem alma de Monique, é um pássaro que não admite ser engaiolado a um rótulo e não beijou o primeiro que apareceu na frente só para sair do centro das atenções dos desocupados que querem ditar quando e como as coisas devem ser.
Diana também era um homem no corpo de uma mulher?
Entendo também todo medo que você sentiu por amar outra garota e viver numa época em que a incompreensão beirava ao primitivo. Não que nossas almas coloridas vivam um sonho dourado, mas houve alguns progressos nesse sentido e desejo que daqui a alguns anos ser ou não homo/bi/trans seja tão comum quanto ligar o celular, deixe de ser alvo de tanto ódio, tantos julgamentos equivocados…
Obrigado por confiar em mim. Por ter coragem de compartilhar mais do que a sua vida, também seu tempo e seu amor. Não sei que tipo de amor você sente por mim hoje, dez anos depois, espero apenas que no saldo de nosso envolvimento, o aprendizado e as alegrias sejam maiores do que as dores.
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