Por Noviça
(A Inteligência Artificial precisará comer muito feijão com arroz para alcançar o mindinho do meu lindo pé direito. Aí, sim, a gente conversa!)
Não sou dramática, só não consigo agir como se fosse feita de cera imune ao derretimento, mesmo diante das provas de fogo, que não são poucas. Estou acostumada com os tantos apelidos recebidos, alguns injustos e exagerados, outros somente de mau gosto.
Pé-frio foi um golpe certeiro na minha dignidade jornalística, nos arroubos indescritíveis diante de uma esfera de couro disputada por 22 homens, um gesto imperdoável. Se uma estrela amarelou em plena final, foi culpa da Noviça. Se um zagueiro decidiu arrumar a meia e dar bobeira num lance decisivo, foi porque ela estava lá; se teve gol contra e goleada de sete, bota toda a culpa nas costas dela.
Quando tudo não passava de brincadeira e meme, eu sabia rir disso tudo, como quem aprecia lidar com as benesses da vida sem grandes afetações, mas aquela goleada mostrou o pior que havia em muitas pessoas. O que antes era somente uma coincidência tola se tornou motivo de medo. Ameaças de morte, ofensas machistas e misóginas… tudo por ter a (in) felicidade de narrar o Mineiraço.
Rubão foi acometido de uma faringite que o afastou das funções e, diante de tantas baixas na redação, fui incumbida de comandar um jogo muito esperado por todos. Relembrar a final de 2002, reeditada naquele 8 de julho, servia de incentivo naquele momento em que o maior oponente do Brasil não era a poderosa Alemanha, mas seu próprio medo de decepcionar milhares em casa, como a história nunca nos deixou esquecer.
Naquela pacata terça-feira, nem o mais pessimista entre todos nós poderia prever tudo que testemunhamos naqueles noventa minutos. Quis crer numa falha da transmissão, numa reação digna do manto verde-amarelo. Quem não desejava dizer aos descendentes que viveu o Mineiraço e se lembrava da grande reviravolta que provou a capacidade do futebol de nos oferecer cenas que desafiam as probabilidades.
Só que não. E minha voz reverberava nos aparelhos sintonizados por todo o país. Lágrimas cálidas caíam e molhavam a bancada, ninguém as via. Memes de gosto duvidoso me atribuíam a culpa do grande fracasso da seleção em casa, como se eu tivesse entrado em campo e entregado a paçoca aos alemães.
Ser uma pessoa pública inevitavelmente me pressiona a desenvolver mecanismos para não padecer diante das críticas. Sempre levei a maioria das piadas na esportiva — inclusive, poderia receber menção honrosa por aguentar tanto e ser simpática —, mas alguns internautas passaram muito dos limites aceitáveis.
Pouco antes da copa de 2018, tomei a resolução de sair das redes sociais e não me envolver com o evento, para evitar burburinhos, mal-entendidos e ataques ferozes de pessoas insatisfeitas com as próprias vidas, muito encorajadas pela impunidade atrás de uma tela. O Brasil perdeu do mesmo jeito. Em 2022, saí de férias.
Quem levaria a culpa pelos fracassos coletivos?
O tempo, felizmente, foi o responsável por me inocentar. Recentemente, fui a Lima para cobrir a grande final entre Palmeiras e Flamengo, pela Libertadores. Alguém relembrou minha suposta fama de pé-frio. Flamenguistas me pediram para torcer pelo Palmeiras, palmeirenses imploraram para eu torcer para o Mais Querido. Um passando a batata quente para o outro e eu ali, ensanduichada entre duas torcidas que queriam resolver suas mágoas em campo.
Não sou a mais entusiasmada das flamenguistas, mas 2021 estava entalado na garganta, eu podia sentir aquela raiva transbordar pelos poros, pelos olhos, pelos tantos pitacos dados na mesa do bar, onde afogamos as mágoas sob goles amargos.
Era vencer ou vencer, meus caros. O rancor também solicitava licença para participar do que não era só uma simples final, mas um acerto de contas. O mundo inteirinho cabia naquele estádio. A alegria tingia o rosto de vermelho e preto. Não tinha meio-termo. Não naquelas circunstâncias. Não quando tamanha conquista tratava de redigir um dos capítulos mais importantes para ambos.
O placar foi magrinho, com potencial para ser maior, como se espera de uma catarse digna da torcida amontoada. Tudo bem, um único gol já nos deu a vitória, nos consagrou num rol onde muito poucos figuram por merecimento.
E eu, onde fico nessa história toda?
Estou em Doha, no Catar, me preparando para cobrir a saga do Flamengo na Copa Intercontinental, elevada ao posto de musa rubro-negra, talismã, completamente livre da pecha de pé-frio, meus amigos. Pude provar que mais pé-quente do que eu, só um pé que pisou na brasa de carvão.
Não à toa, a Malacubaca implora de joelhos — e muitos telespectadores também — para eu cobrir a Copa do Mundo. Reza a lenda que todos os astros estão alinhados e favorecerão a nossa seleção. O vidente L nos diz para tomar cuidado com Senegal ou quiçá a maldição alfabética, contudo, até o Brasil levantar a taça do hexa, muitas águas vão rolar por debaixo desta ponte e eu, naturalmente, serei testemunha viva dessa história.
E, sinceramente, meus caros… para quem quase entrevistou o ET de Varginha e foi barrada pelo governo porque muitas verdades seriam ditas, obviamente, narrar o 7 × 1 foi só mais um capítulo nessa minha vida de absurdos muito bem vividos.
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