Nina contra o mundo | O Jurandir do Apocalipse
No inferno toca sertanejo universitário
O calor era abafado, misturado com os sons da festa ao longe. O grito das pessoas já me dava calafrios. Acostumei-me a esperar pouco. Parei de brigar com o mundo, aprendi a apanhar sem gritar. A vida me ensinou que as coisas boas são só fachada e minha dor nunca será reconhecida, só ignorada. Quando fui escalada para trabalhar no festival, sabia exatamente o que ia encontrar: mais uma multidão de sorrisos forçados, mais uma fila de olhares que não me enxergam, outro extenso turno em sou apenas aqueles números inscritos no canto direito superior do colete. O festival não era uma exceção, era só mais um dia.
Enquanto vestia o uniforme e tentava comer apressadamente porque o urubu da camiseta azul berrava como se eu fosse um porco virando o cocho, o peso de tudo me caiu sobre os ombros como um bloco de concreto. Já não sabia mais o que era sentir-me em casa em qualquer lugar, mesmo quando os lugares eram familiares. O festival era mais uma extensão de um ciclo vicioso. Como sempre, eu era invisível. Eles me viam como a função que eu tinha, e nada além disso. Tudo o que eu queria era encontrar algum significado, mas, como sempre, o significado me escapa. Eu sou só a atendente que aparece e desaparece, como um fantasma que é útil para os outros e, de algum modo, sempre ignorado.
E ali, no meio daquela confusão, entre risos e conversas que pareciam em outra língua, eu entendi. Não era só o festival, não era só aquele dia. Era tudo. Estava cansada de ser tratada como se minha presença fosse apenas um número em uma fila interminável. Mais um evento, mais uma humilhação que minha alma já conhecia bem. Mas o que me restava? Nenhuma outra escolha além de seguir em frente e aguentar, como sempre fiz. Eu estava enclausurada no cativeiro com pulseira no braço e embrulho no estômago.
Naquele momento, éramos apenas mais um número, um grupo a ser espremer naquelas condições desumanas, sem qualquer espaço para respiração. O barulho das vozes e os gritos dos que estavam ao redor me sufocavam, mas o pior não era isso. O pior era saber que não havia escapatória. As outras mulheres conversavam e riam, lamentavam não estar perto do palco e eu me sentia como uma estranha dentro de um pesadelo que, de tão real, beirava à loucura. A pária.
As horas iam passando, mas o tempo parecia dilatar-se ao meu redor, como se o relógio tivesse sido feito para zombar da minha ansiedade. O cheiro de óleo, fritura e suor tomava conta do lugar. Tudo era imundo, a bancada, as cadeiras, as paredes, e eu me perguntava o que estávamos fazendo ali, como havíamos chegado àquele ponto. O que me incomodava mais não era a sujeira ou a pressão da jornada. Era a música estourando nos alto-falantes, invadindo os ouvidos, insuportável, repetitiva. Uma sucessão de vozes agudas cantando sobre amores perdidos e bebidas baratas, como se tudo aquilo fosse uma espécie de consolo, uma máscara para nossas realidades de cansaço e frustração.
Eu odiava aquela música, odiava o jeito como se infiltrava na minha mente, me fazendo sentir ainda mais aprisionada, ainda mais distante do que poderia ser um escape. As outras mulheres pareciam não ligar. Para elas, o apogeu. felizes por estarem respirando o mesmo ar dos seus ídolos de rima pobre. Alienadas. Dançando ao som de letras que rimam "ama" com "cama", como se fossem poesia. Como se trair, beber, esculachar, fosse liberdade. Como se ser corna fosse arte. Como se só existisse um tipo de Brasil.
Para mim, era um reflexo de algo maior, um sistema que nos empurrava para esse tipo de realidade, sem sequer nos perguntar se estávamos dispostas a aceitar esse papel. E, no fundo, eu sabia que nenhuma de nós tinha escolha.
E enquanto isso, as crianças dançavam. Crianças. Com faixas na cabeça e glitter na cara, rebolando ao som de ‘sentar’ e ‘macetar’. E os pais filmavam. Riam. Aplaudiam. Era arte, né? Era família. Era tradição. Ah, se surgisse um personagem LGBT numa novela ou série, ah, aí era escândalo, perigo para a moral e bons costumes. 'Isso pode tirar a inocência das criancinhas!', diziam os hipócritas. Tudo bem se fosse vulgaridade hétero e camuflada de ‘brasilidade’. Tudo bem se a boiadeira usasse o nome de Deus para dizer que queria transar com os anjos. E as caras nem ardiam nessas horas.
Hipocrisia não cantava, fazia backing vocal nesse festival.
Olhavam-me como se eu tivesse lepra. Como se estar ali, uniformizada, suada e exausta, fosse a assinatura do meu fracasso. E talvez seja mesmo. Talvez fracassar seja isso: sorrir para quem te despreza, trabalhar com dor de cabeça, medo e exaustão, e ainda ter que agradecer. Afinal, "é dinheiro entrando", "melhor essa taxa do que nada" e "ingratidão atrai mais limitação" — mantras de coachs de palco e ex-empresários de pirâmides reciclados em influenciadores. Segundo um desses boçais, bastaria chamar o dinheiro 108 vezes e pensar positivo. Se falhou, é porque você não recitou com fé, não acreditou o suficiente, não fez sua parte.
Enquanto isso, o festival se desenrolava como uma pornografia disfarçada de festa. Não sou puritana, no entanto, senti profundo desconforto mesclado com vergonha alheia por ter de assistir casais quase transando em pé, na frente da lanchonete, como se estivessem num quarto de motel, não num evento público. Vi outro casal se xingando, se ameaçando, se reconciliando — e quase transmitindo o ato final em uma live no Instagram, com filtro de ursinho.
Algumas atendentes beberam escondido, burlaram as regras, pegaram uns boy e ganharam gorjetas generosas. Outras se tornaram parte do cenário do show, dançando no camarote, cantando junto — como se ali fosse o ápice da liberdade.
Mas eu fui a sorteada. Ou a azarada.
Quando fui atender um dos clientes bêbados de pulseira preta e ego inflado, ele não me entregou o ticket da vodca com energético — que, aliás, custava quase 20% do que eu ganharia na noite. Em vez disso, me puxou pelo braço. Forte. Tão forte que me desequilibrei. Tentou me beijar. Eu congelei.
Se não fosse o amigo dele intervir, sabe-se lá o que teria acontecido. E o pior? Virou piada. Piada. Gargalhada coletiva. Virei a "difícil", a "que se faz", a "sem graça". Não danço, não ouço, não bato palma para macho nojento que ostenta o SUV para compensar o tamanho do pau. Não me deslumbro com cara harmonizada (só que não) e não sorrio para quem me trata como descartável.
Sou a esquisita. A amarga. A "antipática". A que "não sabe se divertir".
Ora, se divertir para vocês é isso? Se vender por uma taxa irrisória, tolerar assédio como se fosse elogio e ser maltratada por quem se julga superior só por estar do outro lado do balcão? Então eu passo. E faço questão de ser a antipática. A diferentona. Aquela que não se mistura.
Fui tratada como se tivesse um preço. Como se estar ali significasse que meu corpo estava em liquidação, com o combo de batata-frita e refrigerante. A paralisia do medo rouba o tempo, a lucidez e o juízo. A hora não passa. O som ensurdece. E o cheiro de suor e bebida invade tudo. Tudo.
No fundo, esse festival foi um culto ao absurdo. Uma festa para poucos, sustentada por muitos. Um teatro onde as estrelas são feitas de plástico e as palmas abafam os gritos de quem só queria ir embora sem sentir que deixou um pedaço da dignidade para trás.
Vi também o pessoal bêbado, querendo partir para cima dos seguranças, mijando nas calças, enquanto os banheiros se transformavam em dark rooms imundos, onde o respeito e a dignidade eram apenas memórias que evaporavam no ar pesado de álcool e desespero. Ao final, as pernas travaram, caminhar tornou-se penoso, não havia um pedacinho da minha alma que não estivesse destroçado.
E então veio a fila para receber o pagamento em dinheiro. O que deveria ser apenas uma formalidade virou um pandemônio. Um casal, sem a menor cerimônia, furou a fila, avançando com a audácia de quem já sabe que as regras não se aplicam a eles. As pessoas começaram a gritar, e quase rolou pisoteamento. O caos foi absoluto, mas ninguém se importava. Era só mais uma noite.
Eu, ali, parada no meio disso tudo, com as mãos tremendo, me perguntei em que momento aquela adolescente cheia de sonhos grandes e olhos brilhando se perdeu. Em que momento ela aceitou se humilhar por migalhas, trocando o brilho pelo cansaço, a esperança pela exaustão. Onde ela se perdeu? Quando a luta pela sobrevivência se transformou no preço da perda de si mesma? Eu ainda busco a resposta.
Não tem remuneração capaz de ressarcir os danos de uma maratona de abusos, nenhum dinheiro compra a paz de espírito. Pode parecer dramalhão, contudo, continuo tentando juntar os cacos de mim — cacos que ficaram naquela lanchonete minúscula, sob a luz fria de uma festa que nunca fora minha.
Meu braço ficou roxo por dias. Minha alma, por mais tempo ainda.
Dizem que foi um sucesso. Claro, foi. Um espetáculo para a sertaneja esquelética, que cantou sobre estar 'feliz, mas solteira', enquanto o cachê gordinho vai direto para o tratamento com a caneta mágica da moda. Um estouro para a boiadeira, que talvez tenha se formado em marketing, mas em conhecimento geral ainda está a um passo de aprender a ler — tudo isso com fãs que parecem ainda mais desinformados do que as letras repetitivas que celebram. Uma noite encantada para as riquinhas com chapéu de feltro e franja grudada na testa, que garantiram seu lugar no camarote e saíram de carros importados, com sorrisos de selfie e o cheiro inconfundível de um perfume de 700 reais.
Porque nem todo mundo que foi ao festival voltou inteiro. E nem todo mundo que voltou quis lembrar que esteve lá.
Crônicas Desbocadas | A escolhida e a esquecida
Crônicas de uma atendente cansada de ouvir que a vida é justa para quem “merece”.
Tem gente que nasceu com o cabelo certo, a pele lisa, o nome que soa bem até quando o vento sopra. Gente que tem um sorriso no canto da boca, mas um mundo inteiro dobrado aos seus pés. Gente como ela.
A influencer que minha mãe segue com devoção quase religiosa, a quem chamarei aqui de “a Escolhida”, porque é assim que ela parece se sentir: escolhida por Deus, pelo algoritmo e pelo marido — um sujeito manso, prestativo, que vive se dobrando para atender aos caprichos dela.
A Escolhida é branca, magra, de cabelo escorrido como comercial de xampu. Mora no interior de São Paulo, numa casa que mais parece cenário de novela da Globo, e começa os vlogs dizendo: “Ai, gente, desculpa estar meia desgrenhada hoje” — mesmo com filtro, maquiagem impecável e short de alfaiataria. Diz ser simples, mas não sabe o preço do arroz. Vai ao mercado comprar “besteirinhas” e volta com três tipos de taça, oito coberturas para sorvete e tudo mais que tiver direito.
Ela não lê livros. Não cursou faculdade. Nunca pegou fila no SUS. Nunca apertou o botão errado da catraca do transporte público porque não sabia se a tarifa tinha mudado. Entretanto, é “abençoada” por não se humilhar por uma miséria na escala 6x1, porque tudo que recebe — e que posta — é “Deus honrando” sua fidelidade. Até o fogão novo (porque enjoou da cor do antigo), segundo ela, foi “presente do céu”. Mal sabe a sebosa que seu céu tem o nome do marido e CPF dele na nota fiscal parcelada.
Ela aparece lavando louça, só para fazer charme e se dizer "gente como a gente", e o marido vem por trás, tenta abraçá-la. Ela ri, diz “Ai, sai daqui, seu gordo!” com aquela risadinha sem graça, deixando o coitado constrangido em rede nacional. Ainda assim, ele continua apaixonado. Monta móveis, edita vídeos, embala surpresas de Páscoa e grava com o maior sorriso do mundo quando ela o manda calar a boca. Amor assim só se vê em filmes... de terror psicológico.
Tem dias em que ela chora durante o devocional — não por arrependimento, mas porque ainda não conseguiu a publi de alguma marca renomada. Diz sofrer porque não tinha sequer um frasco de perfume antes do marido. O sofrimento dela é não ser a Virgínia.
Ela diz que doa amor, mas não doa móveis. Tudo é vendido — até o berço do filho que já não usa. Porque crente que se preza, segundo ela, não se apega. Só fatura.
Enquanto isso, do outro lado da tela, estou eu. Fardada de colete feio que gonga a aparência, com os pés latejando, a lombar estourada, tentando disfarçar o cansaço, sorrindo para madame véia mal-humorada que desconta em mim se o time perde ou empata, como se fosse culpa minha que o preço dos comes e bebes sofreu reajuste. Na Páscoa, os colaboradores não ganham nem um simples bombom com frase de almanaque.
A vida, para algumas, é chocolate importado. Para outras, é o amargo da comparação.
Tem gente que sofre e doa o que pode. Que se contenta em ver o outro feliz com o mínimo. E tem quem ostente até a tristeza, ensaiando lágrimas diante da câmera porque não virou capa da VOGUE Evangélica.
E então, como se o altar do consumo precisasse de mais uma oferenda, ela anunciou — com o mesmo tom doce de quem conta uma revelação celestial — que trocou a cama de casal. Não porque quebrou, não porque precisava, mas porque “tava enjoada, gente”. E o maridinho, claro, correu para comprar a mais cara da loja, como um cordeiro devoto a um altar que nem sequer sabe se é amado de volta.
O curioso — ou revoltante, mesmo — é que ela não doa nada. Nada. Tem mães de verdade, com muito menos, que separam os brinquedos das crianças, as roupas que não servem mais, e dão com alegria, com gratidão, com fé em algo maior que o próprio umbigo.
E o devocional? Continua. Falar o nome de Deus em vão está em alta, dá engajamento. O cabelo, claro, segue escorrido. Porque frizz é pecado. E quem tem não tem cabelo esticado, quem sua, quem engorda, quem tem olheira, quem sofre calada, não tem uma aliança grossa na mão é só mais uma das outras. As esquecidas.
Eu sou uma dessas.
Sou a que vive tentando ver beleza onde o mundo só vê falha.
Sou a que ri sem ter vontade, porque tem gente por perto.
Sou a que se cansa de fingir que está tudo bem, mas finge mesmo assim.
Ela não é simples, e sim o produto final da fábrica de vaidade digital, disfarçada de evangelho, embalada para presente em reels de supermercado com trilha fofa e maridinho acenando no fundo. E enquanto segue vendendo até os cabides da casa para fazer caixa e comprar outra cafeteira “porque agora eu gosto de outra cor”, a gente aqui se pergunta: até quando o mundo vai premiar esse tipo de gente?
E o pior é saber que ela não está sozinha. Que há todo um sistema que alimenta essa farsa, que recompensa o falso brilho, que transforma arrogância em estilo de vida. E a gente, que só quer existir com dignidade, fica no limbo, esperando que um dia vejam valor onde não há filtro. Porque a gente também ora. A gente também ama. No entanto, o que a gente tem não vira publi. Não viraliza.
Ainda tem um pedaço meu que não desiste. Porque, talvez, um dia, Deus olhe para mim com o mesmo filtro que ela usa nas fotos. E diga: “Agora é a sua vez.”
Mas até lá… eu que lute.
— Nina
(a gata borralheira do reino da desarmonização, anti-clean girl)
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