Nina contra o mundo | Tem gente que não é segurança, é perturbação patrimonial





Você já viu alguém que parece ter a alma toda feita de desodorante vencido e comentário dispensável? 

Sou dessas que cumprimentam todo mundo atendente, moça da limpeza, porteiro, zelador, o dono da empresa, entregador, aos pombos ciscando no pavimento de petit pavê e até o cone de trânsito, a depender do meu humor. No entanto, sorrisos educados não são precedentes para gracejos não consentidos. Para um bom entendedor, meia palavra deveria endossar o significado de "sou legal, não estou te dando mole". 

Pois é. 

Na prática, nós vivemos dando encontrão com néscios que mal sabem aplicar as normas de higiene básica em si próprios e faltaram às aulas sobre respeito à mulher. Os gaviões de penas de plástico rondam por toda a parte, esperando o ratinho desprevenido demonstrar um tiquinho de vulnerabilidade e pá, já era. Nas sombras sinuosas das lentes distorcidas eles são os maiorais, mas só lá.

Que o diga o segurança da farmácia, um combo entre bafo quente, machismo disfarçado de gentileza e um radar afinado para falar groselha sobre quem não pediu opinião. Tudo porque eu dei bom-dia a ele. Por pura educação. 

Na primeira vez, ele me alertou para esconder o celular. Sendo o segurança de uma farmácia situada na região central, já presenciou diversos furtos de aparelhos e prefere aconselhar a depois ser acusado de omissão. Entretanto, quando o dito-cujo quis tentar me ensinar a usar aquele aplicativo para pedir motorista como se eu fosse uma menininha de três anos, deixei passar. Estava com pressa, chovia e eu só queria voltar para casa.

Mas aí vieram as outras vezes.
E aí, meu bem, o cheiro de gentileza azedou.

O cidadão julgou haver desbloqueado o pacote "Sou o guia turístico da farmácia e da sua vida, agora escute". Toda vez que chego ali, ele se aproxima como se eu fosse um projeto de estagiária desavisada do apocalipse. A cada bom-dia, um comentário invasivo não solicitado. Um “essa roupa aí chama atenção, hein”, ou um “por que tão calada hoje?”, ou o clássico “sorri, fica mais bonita”.

Eu não pedi. Eu nunca pedi.

Ele é segurança, não balconista, nem farmacêutico ou caixa. Segue-me pelo interior do estabelecimento, querendo me vender medicamento, gesticular, se assanhar. Uma cena patética, de embrulhar o estômago. Não estou ali por prazer, mas por necessidade. A farmácia tem os preços mais acessíveis para os medicamentos contínuos que eu uso — e só por isso ainda engulo o desgosto de cruzar com aquele sujeito.

Guardo a sacolinha dos medicamentos dentro da bolsa e caminho rumo à porta, quando o Jurandir estufa o peito e se antecipa:

 “Aqui rouba muito, hein? Ontem mesmo vi uns dez celulares indo embora. Fica esperta, viu?” 

Dez celulares. Em um dia. Na mesma farmácia. Alô, Hollywood, temos aqui um novo roteiro para Missão Impossível: O Farmacopocalipse.

De duas, uma: ou ele é um péssimo segurança ou perde tempo querendo se gargantear para as freguesas como se fosse o bom da boca.

"Você sabe pedir Uber?", insiste o sujeito. "Tem que tentar gravar a placa, o modelo e a cor do carro." Aquele mansplaining clássico no ar. O carro não chega, o aplicativo trava, e o Jurandir ainda está ali, cravado no chão da farmácia como se fosse parte do mobiliário.

"Tem que ver se o motorista não é estranho, né? Porque hoje em dia…"

Hoje em dia o quê, Jurandir? Que mulher em 2025 ainda não tem um mapa mental de rotas de fuga e contatos de emergência?

Respiro.
Tento não azedar.
Sorrio aquele sorrisinho educado que toda mulher aprende a dar — o tipo que diz:
"vai embora ou eu grito?"

Não para por aí. 

A parte realmente tóxica da equação: os comentários. Racistas. Nojentos. Preconceituosos.
Cada pessoa que passa vira alvo do radar moral distorcido dele:
“Esse aí tem cara de vagabundo.”
“Olha a roupa daquela ali, certeza que é noiada.”

Um desfile de julgamento travestido de “experiência de rua”, como se ele tivesse algum direito de classificar seres humanos com base em aparência. E é aí que o suposto “protetor da farmácia” escorrega feio: os comentários não despertam confiança — despertam nojo.

Não é por causa da roupa, da tatuagem ou do andar de ninguém.
O que mais me dá medo ali é ele.

A gota d’água foi outro dia, quando comprei um picolé porque o sol parecia cuspir fogo nas calçadas. Estava derretendo — eu e o sorvete. Dei uma mordida, distraída, só querendo um alívio qualquer… e lá estava ele, me olhando. Olhando como quem acha que pode.

Aquela mirada de cima a baixo, meio torcida, com um sorriso escondido atrás do crachá. Não falou nada. Não precisou. O olhar já dizia tudo. O tipo de coisa que faz a gente se sentir suja só por existir.

E foi aí que entendi: não era gentileza.

Nunca foi. E pra completar a comédia involuntária, solta um Por que você sumiu, hein? Tava com saudade. Oi?

Tem cheiro de sovaco, alma de comentarista de portal e a síndrome completa de “me escuta porque eu sou homem e você, claramente, não sabe viver sem meu palpite.” Um verdadeiro Odete Roitman da segurança particular — só que sem a elegância do figurino e com metade da relevância.

A pior parte? Eu sigo indo lá porque preciso. Mas cada visita se transforma num teste de resistência emocional, um reality show chamado Sobreviva ao Macho Reacionário da Farmácia. E olha, eu não me inscrevi.

A real é: tem gente que não é segurança, é perturbação patrimonial. 

Com dignidade no picolé e na palavra,
Nina

(e um coração que merece mais do que sovaco e julgamento disfarçado de flerte)

📝 Nota da autora

Esta crônica é uma obra de ficção literária. Ainda que inspirada em situações reais e vividas por muitas mulheres, os nomes, falas e contextos foram adaptados para fins narrativos.
Não há referência direta a pessoas identificáveis, tampouco imputação de crime.
O texto é uma manifestação protegida pela liberdade de expressão e criação artística.
Se você se sentiu representado… talvez valha refletir sobre o motivo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Muito obrigada pela visita ao OCDM, espero que você tenha gostado do conteúdo e ele tenha sido útil, agradável, edificante, inspirador. Obrigada por compartilhar comigo o que de mais precioso você poderia me oferecer: seu tempo. Um forte abraço. Volte sempre, pois as páginas deste caderno estão abertas para te receber. ♥

Como nasce um post dos Cadernos de Marisol ✍️

  ✍️ Como nasce um post dos Cadernos de Marisol Nem tudo o que você lê aqui começou com uma ideia perfeita. Às vezes, começou com uma lembra...