Terças com Tita | Quando o Aurélio voou: a vingança ortográfica de Arlete


📎 Nota da narradora:
Desde a publicação do post sobre a famigerada "AUTORIZASSÃO" — que rodou o CEPEM mais rápido que bilhete de sala para sala — fui cobrada a contar o que aconteceu depois.
Afinal, bilhete mal escrito é uma coisa…
Agora, dicionário voando?
Isso foi história.

E como diria D. Arlete: “o castigo vem antes da aula de reforço”.
A seguir, os fatos que abalaram a honra linguística de uma mãe-professora.

Quando o Aurélio voou: a vingança ortográfica de Arlete
Por Tita (e testemunhas aterrorizadas)

Era para ser só mais uma sexta-feira de véspera de Carnaval, com os adolescentes tentando se safar da escola e os pais fazendo vista grossa. Não para Arlete Rios Carrasco.

A respeitável D. Arlete Rios Carrasco é nossa professora de Biologia, cuja fama de linha dura se tornou lenda viva do nosso querido CEPEM, exageros à parte das fofocas de corredor. Apesar de não dar trela para fanfarrões e ser dura quando necessário, Arlete é toda coração — mas haja coração para receber da diretora Raimunda o convite para uma conversinha a portas fechadas.

Coisa boa não devia ser. Rodrigo que o diga.

Tudo começou com um barulho estranho no armário dos professores.
Alguns disseram que era a Arlete engolindo o choro.
Outros, que ela esmagou um grampeador de tanta raiva.

A verdade é que, naquela manhã, Raimunda revelou a bomba: Rodrigo havia forjado uma autorização escolar, usando o computador da escola para inventar uma suposta viagem pedagógica à Ilha do Mel durante o Carnaval.

E não era qualquer falsificação. Era uma AUTORIZASSÃO com dois S, escrita no Word, com WordArt colorido e sem uma mísera vírgula no lugar certo.

O mais trágico? O verdadeiro professor de Geografia, Sr. Aluísio, estava afastado por licença médica desde janeiro. Mal sabia ele que, em seu nome, nascia uma quadrilha juvenil com sede de litoral e pouca vergonha na cara.

— “Seu filho está envolvido nessa safadeza até o último fio de cabelo”, disse Raimunda, com os olhos semicerrados de quem já cogita expulsão preventiva.

Arlete ficou branca.
A mesma Arlete que lia bula de remédio no microscópio e corrigia prova de múltipla escolha com caneta vermelha e régua.
A mesma que nunca passou pano pra ninguém.

Mas ali… ali ela hesitou.

Porque a verdade, como ela própria confessou depois, é que ela quis acreditar.

Rodrigo, afinal, vivia dizendo que queria ser padre.
Que um dia celebraria missa na paróquia. Que a vida dele era com Deus.
E ela, como mãe e mulher de fé, acreditou.

Na quinta-feira, assinou o papel falso e ainda comprou as passagens.
Foi até a rodoviária. Pegou fila. Pediu lugar na janela.
Separou um casaquinho, suco em pó e alguns pacotes de bolacha.


Provérbios de D. Arlete Rios Carrasco

A chinelada das 16h

O embarque seria às 17h.
Às 16h, lá estavam todos reunidos na casa da Arlete:
Rodrigo, Júlia (maquiada, batom vermelho, mochila de rodinhas), Andréa (desconfiada como sempre), eu e Guilherme, de mãos dadas.

A sala estava barulhenta. Sanduíches prontos, suco gelado, e até conversa animada sobre "a barraca mais perto da praia".

Então, entra Arlete.

Com a cara de quem já havia chorado, orado, planejado… e decidido.

Na mão, o documento fajuto. Na alma, a fúria acumulada de todas as mães que já acreditaram demais.

Ela parou no meio da sala.
Olhou para todos.
Tirou o chinelo.

Rodrigo Rios Carrasco... você tentou me passar a perna com dois S?
— Eu? Eu, não! 
— mentiu o moleque.
— Nem vem que não tem, senhor Rodrigo. O senhor está pensando que eu nasci ontem?
— Eu, cara? Eu não fiz nada, meu!
— Cara, meu... 
— arremedou Arlete, com aquele desprezo maternal que machuca mais que chinelada. — Cala a boca, rapaz! E ainda por cima estou dando guarida para um mentiroso que, não satisfeito em cometer um delito, levou mais gente junto.

PAF!
A chinelada cortou o ar com a precisão de uma estrela ninja.

Rodrigo tropeçou no tapete.
Júlia soltou um “ai meu Deus”.
Andréa cruzou os braços.
Guilherme sussurrou “Caramba”.

A verdade é que Rodrigo ainda tentou se safar.
Mesmo com a marca da chinelada recente nas costas e o constrangimento estampado no rosto, teve a ousadia de soltar:

— Ah, mãe... foi só um errinho...
— Você chama isso de um errinho, senhor Rodrigo? — reagiu Arlete. Só a víamos brava daquele jeito quando algum palhaço da turma inventava de colar nas provas dela.

Errinho.

Essa palavra ecoou na sala como um palavrão dito na sacristia.
Não era como ter dúvidas sobre quando escrever ratificação ou retificação, quando usar cessão, seção ou sessão.
Era um equívoco de natureza crassa, que seria cunhado de forma proposital se o meliante fosse outro.

Arlete, que já tava com o rosto levemente trêmulo e os óculos meio tortos do calor da humilhação, levantou lentamente do sofá.
Foi até a estante.
Tirou de lá o dicionário Aurélio de capa dura, o de edição antiga — aquele que parece mais um tijolo com lombada literária.

Virou-se com toda a calma do mundo.
E disse, com a voz mais firme que já ouvi na vida:

Errinho? Isso não é errinho, é homicídio linguístico! — bradou nossa professora.

E então... o Aurélio voou.

Voou como quem sabia exatamente o que estava fazendo.
Com rotação.
Com intenção.
Com GPS emocional guiado pelo coração magoado de uma mãe que foi feita de palhaça com dois “s”.

Rodrigo, em modo de sobrevivência, abaixou a tempo.
O dicionário raspou no abajur, que tombou com estardalhaço.
E ainda acertou a parede, derrubando um quadro da Sagrada Família.

O silêncio foi sagrado.
Literalmente.

Todo mundo ficou paralisado.
Eu segurava o riso com as duas mãos.
Andréa arregalou os olhos.
Júlia quase desmaiou de susto.
Guilherme, coitado, ficou com a boca aberta como quem acabou de ver a aurora boreal dentro de uma sala de estar em Curitiba.

Arlete só se abaixou com dignidade, pegou o dicionário de volta, limpou a capa e concluiu:

Na próxima vez que errar um cedilha... te jogo o Michaelis também.

Eu só consegui pensar:
a vingança ortográfica foi servida — com tapa, tom e trilha sonora.


Dizem que Rodrigo quase foi suspenso.
Só não foi porque a própria Arlete, entre o orgulho ferido e o desejo de justiça bíblica, pediu pra “resolver tudo em casa — com os métodos dela”.

Enquanto Rodrigo esfregava a parte de trás da cabeça e o Guilherme ainda tentava entender se aquilo tudo era real, Arlete já estava no telefone.

Com a mesma mão que jogou o dicionário, ela discou calmamente para a casa da Rebeca. A voz? Doce.
Mas o conteúdo... digno de boletim extraordinário.

Boa tarde, Rebeca, tudo bem? Aqui quem fala é Arlete... 

Pausa dramática.
Sorrisinho no canto da boca.
Rodrigo prendeu a respiração.

Então, minha querida... só pra você ficar ciente: sua filha Júlia estava aqui em casa, hoje, às vésperas de uma suposta viagem escolar. Com uma autorização forjada — sim, forjada, com dois “s” e tudo. Inclusive, parece que sua outra filha, a Andréa, estava ciente e não fez nada pra impedir...
Não, imagina, não estou acusando, estou apenas compartilhando como mãe preocupada.

(Todos nós sabíamos que a Arlete estava, sim, acusando. E fazendo isso com maestria.)

Se quiser conversar pessoalmente, podemos agendar um chá. Ou uma reunião de pais e responsáveis. Estou disponível. Boa tarde, Rebeca.

E clic.
Desligou com a classe de quem finaliza uma aula sobre mitocôndrias. Por falar nelas, Rodrigo não sabe o que é uma mitocôndria. Se eu fosse ele, tomaria cuidado para não ver o livro de Biologia voando sala adentro, viu?

Rodrigo ficou pálido.
Júlia, muda.
Andréa bufou como quem sabia que o fim estava próximo.
E eu? Eu só pensei:

“O inferno não tem fúria como a de uma mãe que foi enganada com um bilhete mal escrito.”

Não que a minha barra estivesse tão limpa assim, mas o castigo também viria a cavalo, assunto para depois da quarta-feira de Cinzas.

A palavra "AUTORIZASSÃO" virou piada na escola, escândalo na direção e, em casa, virou motivo pra Arlete entrar em modo exorcismo.

Na semana seguinte, a palavra “AUTORIZASSÃO” virou piada no mural, figurinha em caderno e meme improvisado na aula de Artes.
A professora de Redação, D. Liane, só avisou:
— Se aparecer isso aqui na minha prova, repete o ano.

Arlete Rios Carrasco, que já tinha fama de linha dura, conservadora e com reflexos de ninja, protagonizou um dos momentos mais lendários da história da educação brasileira alternativa: o dia em que ela arremessou um dicionário Aurélio no próprio filho.

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