Parte 1: Da Zombaria ao Orgulho
Por Mary Luz | Os Cadernos de Marisol
25 de maio é o Dia do Orgulho Nerd. E antes que alguém ache que é só mais uma data inventada pra vender camiseta com frase de efeito, vale dizer: essa data tem uma origem real e um significado que merece ser resgatado.
Foi escolhida por marcar a estreia de Star Wars: Episódio IV – Uma Nova Esperança, em 1977. Mas o que começou com sabres de luz e rebeldes do espaço se transformou em algo muito maior: o reconhecimento daqueles que sempre criaram, sentiram e resistiram — mesmo sendo ridicularizados por isso.
A origem do termo "nerd"
A palavra "nerd" apareceu pela primeira vez em 1950 num livro infantil do Dr. Seuss, mas seu uso como rótulo pejorativo se espalhou a partir dos anos 60 e 70. Nos Estados Unidos, "nerd" era o apelido dado aos estudantes considerados antissociais, obsessivos por estudos, visualmente "desajeitados" (óculos, roupas esquisitas, postura retraída) e que fugiam dos padrões esportivos e populares.
Ser nerd era, basicamente, ser o excluído.
O cinema norte-americano e o reforço do estereótipo
Durante os anos 80 e 90, os filmes adolescentes ajudaram a sedimentar esse estereótipo. Os nerds eram quase sempre:
- os personagens secundários,
- que sofriam bullying,
- que falavam de tecnologia, ficção científica ou RPG,
- e que, no máximo, serviam de "alívio cômico" para o protagonista popular.
Séries como Barrados no Baile, Saved by the Bell, ou filmes como Clube dos Cinco e A Vingança dos Nerds pintavam o nerd como alguém que só seria aceito se deixasse de ser quem era.
A virada cultural dos anos 2000
Com o sucesso de Harry Potter, Senhor dos Anéis, Marvel, DC, Star Wars renovado, Game of Thrones e o crescimento das plataformas digitais, o conteúdo nerd se transformou em mercado.
De uma hora pra outra, ser nerd virou sinônimo de ser "cool". Produtos antes considerados "de nicho" viraram bilheteria bilionária, e o mundo passou a ostentar cultura geek como sinal de inteligência e estilo.
Só que...
A indústria limpou o nerd real
No processo, a indústria pegou o visual (óculos, camisetas com logos de super-heróis, estatuetas Funko Pop), mas deixou de lado a essência:
- a solidão de quem cresceu sem ser entendido,
- a fuga através da fantasia,
- a capacidade de criar mundos pra suportar o real.
O nerd verdadeiro sobreviveu à zombaria. Não porque virou tendência — mas apesar dela.
Orgulho nerd é resistência
Hoje, os Cadernos de Marisol celebram o orgulho nerd como ele realmente é:
- O orgulho de quem escrevia fanfic no caderno da escola.
- De quem inventava personagens porque não se encaixava na vida real.
- De quem sabia que criar era um jeito de não enlouquecer.
Parte 2: As Invisíveis do Orgulho
Apesar da ideia do "nerd excluído" ser amplamente aceita, há uma camada ainda mais invisibilizada nessa narrativa: as meninas nerds.
Enquanto os garotos nerds eram estereotipados como desajeitados, inteligentes e solitários, as meninas nerds simplesmente não existiam na maior parte das representações. Quando apareciam, eram:
- A "feia que depois vira bonita";
- A única garota do grupo, geralmente servindo de interesse amoroso;
- A "esquisita" que precisava ser transformada.
- Ou, em muitos casos, apenas uma extensão da nerdice masculina (a que entendia tudo de jogos ou tecnologia, mas nunca tinha tempo de ter voz ou história própria).
Nerdice feminina: entre a exclusão e o afeto secreto
Meninas nerds cresciam ouvindo que eram estranhas, que “nenhuma garota gosta de matemática”, que “isso é coisa de menino”. Ser menina nerd era carregar dupla rejeição: da sociedade e da própria comunidade nerd, que era — e ainda é — fortemente dominada por homens.
Além disso, muitas meninas nerds se refugiavam nos livros, nas séries, nos diários e nas fanfics, não apenas por interesse intelectual, mas por sobrevivência emocional.
O lugar da afetividade no orgulho nerd
Enquanto a indústria vendia o nerd como um gênio solitário e as redes sociais o transformaram num personagem performático, a nerdice real — especialmente a feminina — tem muito mais a ver com afetividade, imaginação e refúgio.
Meninas que escreviam cartas para personagens fictícios. Que criavam playlists para casais imaginários. Que faziam diários em terceira pessoa. Que montavam cadernos com códigos secretos ou inventavam escolas mágicas só pra ter onde existir.
Essas meninas foram invisibilizadas pela indústria geek. E muitas delas cresceram sem nunca se reconhecer nos personagens ditos nerds — porque os nerds midiáticos nunca foram feitos para elas.
Resgatando a voz
Hoje, quando falamos em orgulho nerd, precisamos reconhecer as meninas que viveram na borda da cultura pop. As que criaram universos e escreveram histórias sem nunca serem lidas. As que amaram, sonharam e resistiram com delicadeza num mundo que só respeita o barulho.
Na parte 3, vamos falar sobre o nerd do novo milênio: o influencer, o bet geek, o mercado do fandom e por que nem toda estética nerd é orgulho — às vezes, é só uma embalagem vazia.
Parte 3: O Bet Geek e a Vitrine Vazia
A cultura nerd virou um mercado bilionário — e com isso, surgiram os nerds de vitrine: homens jovens, brancos, bem-apessoados, que usam camisetas de heróis, jogam no Twitch e falam de filmes da Marvel, mas sem nenhuma vivência de exclusão real.
O "bet geek" é o cara que se vende como nerd sensível, mas na prática é só um influencer de camiseta preta com referências rasas. Ele tem os símbolos, mas não tem a história. Consome, mas não cria. E muitas vezes, reproduz o mesmo machismo e elitismo do qual o nerd de verdade sempre fugiu.
Enquanto isso, quem cresceu sendo chamado de esquisito, quem chorou lendo livro de fantasia no recreio, quem sobreviveu à adolescência criando mundos fictícios para suportar a realidade… continua sem espaço, mesmo agora que ser nerd "tá na moda".
Quando o nerd virou embalagem
As redes sociais e o marketing transformaram a nerdice em um acessório. Vemos "nerds" patrocinando bebida energética, streamando gameplay vazio, ou dando opinião sobre cultura pop sem nenhuma sensibilidade ou leitura crítica.
O problema não é gostar de cultura pop. O problema é esvaziar o significado de algo que nasceu da dor, da imaginação e da necessidade de sobreviver em silêncio.
O que ainda vale preservar
Nerdice de verdade é memória, é criação, é resistência afetiva. Ainda existem nerds que escrevem porque precisam. Que criam porque sentem. Que se emocionam com coisas pequenas, que se lembram do que era ser ignorado.
É por eles — e por elas — que ainda vale dizer:
Orgulho nerd é para quem resistiu quando era piada. É para quem criou mundos em vez de aceitar os que lhe deram. E para quem não precisa de palco, porque já viveu nos bastidores por tempo demais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Muito obrigada pela visita ao OCDM, espero que você tenha gostado do conteúdo e ele tenha sido útil, agradável, edificante, inspirador. Obrigada por compartilhar comigo o que de mais precioso você poderia me oferecer: seu tempo. Um forte abraço. Volte sempre, pois as páginas deste caderno estão abertas para te receber. ♥