Terças com Tita | A resistência começa dentro de casa


Hoje me peguei lembrando do dia em que alguém me ouviu pela primeira vez — de verdade. Não foi em casa. Não foi entre colegas. Foi num momento simples, numa sala de aula barulhenta, com cheiro de merenda e barulho de ventilador.
Foi a primeira vez que senti que escrever poderia me salvar.
Nem todo mundo vai entender o que isso significa. E tá tudo bem. Porque escrever, para mim, é como conversar com a menina que fui e dizer a ela: “Você não estava errada. Só nasceu num mundo que ainda não sabia como lidar com a sua força.”
Este é um pedaço da minha memória guardado com grafite, dor e alguma poesia.

Quando formamos fila no pátio, foi um rapaz que respondeu pela nossa turma e nos conduziu até a nossa classe. A professora Dulce havia saído de licença e ele ficaria no lugar dela “por uns tempos”. As outras crianças estavam desoladas, no entanto, eu me encontrava em um estado de curiosidade profunda. Ele repreendeu a Cássia pelas brincadeiras que só tinham graça para ela.
Num dia, ele chegou sorrindo, com um livro embaixo do braço. A Bolsa Amarela, da Lygia Bojunga. Enquanto isso, Cássia e as asseclas reviravam os olhos, entediadas, alguns até cochilavam e eu não podia me ver, mas sentir o encantamento me arrebatar para o universo mágico criado pelas palavras.
— Quem aqui já escreveu uma história?
A sala caiu na risada. Eu quase abaixei a mão, mas deixei-a ali, tremendo no ar.
— Você, Renata? Pode ler para a gente?
— Aff… — murmurou Cássia.
Li. Gaguejando, meio sem respirar, sobre uma menina e um cachorrinho. Quando terminei, ele disse:
— Você já pensou em ser escritora?
— Escritora, eu?
Cássia e as amigas já estavam me arremedando, cochichando, relinchando, porém, o professor interveio.
— Isso é literatura, Renata. Você escreveu com o coração.
Ninguém disse isso para mim antes. Nem em casa. Nem na escola. Nem no espelho.
Depois daquele dia, comecei outro caderno. 

Se escrever é guardar um pedaço da gente, eu quero guardar tudo.

✍🏻✍🏻✍🏻✍🏻

Era mais uma daquelas tardes onde eu já havia terminado todas as tarefas de casa e me dedicava a terminar mais um episódio do João Valentão, o herói mais desastrado da galáxia. Desenhado à mão, colorido com lápis já pequenos e grampeado com orgulho. Era meu melhor trabalho até ali.
Para ser escritora como aqueles grandes nomes que povoavam as capas de livros lá na biblioteca, eu precisava começar muito cedo, para que, quando fosse grande, soubesse direitinho o que fazer.

Meire ouviu minha risada e entrou no quarto como quem invade território inimigo, só faltou jogar bomba de efeito moral em mim. Olhou o gibi e fez aquela cara: desprezo e raiva misturados.
— O que são essas porcarias?
— É um gibi. Quer ler?
— Gibi. Gibi de quê?
— Do João Valentão, mãe. Fui eu que inventei o João Valentão. Eu fiz tudinho: desenhei, escrevi, pintei e grampeei. Quer ler?
— Não tenho tempo para as suas loucuras, Renata!
— Não são loucuras, são aventuras!
— Mente desocupada, oficina do diabo. — Mamãe tomou o gibi das minhas mãos e berrou: — Isso não tem nexo! Não escreve coisa com coisa!
Rasgou. Em tiras. Jogou no lixo.
— E ainda desperdiça material escolar para escrever asneira, sua ingrata mau-caráter!
— Não é verdade!
— Conspirando contra mim, ainda por cima.
Chorando, vi meu trabalho de semana reduzido a nada. Ela, ainda por cima, debochou:
— Engula esse choro, desgraça! O choro é a arma do covarde! E, a propósito, vê se limpa essa sujeira se não quiser que eu te dê uns bons motivos para chorar!
Naquela noite, não consegui dormir. No dia seguinte, a professora Dulce voltou da licença, se desgraça pouca for bobagem. Continuei escrevendo, mesmo sob a censura descomunal de Meire. Quando ela descobriu a fronha do travesseiro, escondi as folhas debaixo do estrado do colchão, mas, num dia, sem querer, descobri que o guarda-roupa tinha um fundo falso e ele se transformou num baú mágico improvisado, à prova da fúria de trogloditas e seus critérios distorcidos.
Aprendi o significado de saber resistir aos 9 anos, muito antes de explorar além da denotação.

Mas, no dia seguinte, escrevi de novo. E dessa vez escondi meu caderno dentro da fronha do travesseiro.

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