Brilho no olhar também é nota

 

O dia em que me disseram: você tem perfil para ser jornalista

Comecei o curso com medo. Medo de repetir o que vivi na outra instituição. Dos zeros. Do assédio moral, do silêncio, da pressão, do julgamento. A fama do professor não ajudava: diziam que era marrento, carrasco, que detonava os trabalhos e não poupava nada nem ninguém nos feedbacks.

No entanto, não foi bem assim. Na verdade, foi tudo ao contrário.

Ele tinha sensibilidade e empatia por pessoas como eu, que têm traumas de apresentar trabalho para a turma inteira, que passam mal por semanas antes da apresentação, só imaginando os possíveis desastres. Os feedbacks geralmente eram sobre não ter medo de errar, pois lá era o lugar de aprender, dicas para desenvolver uma boa oratória, não eram ataques velados à integridade, nem desprezo pela produção capitaneada por um indivíduo do sexo feminino.

Esperar a nota de um trabalho não era mais tortuoso. Havia alguém do outro lado, pronto para apontar os aspectos acertados, sugerir ajustes, sem desmerecer, sem elitismo, sem favoritismos ou rancores. Alguém que um dia também foi aluno.

O medo existiu. Os gatilhos também. Sobre ser a moça que passava os intervalos sozinha, sobrava na composição dos trabalhos em equipe, rejeitada antes mesmo de ter oportunidade de se apresentar, interrompida sempre que tentava falar.

Quando fiquei sem grupo para apresentar um seminário, ele me deixou fazer tudo sozinha, me chamou e disse: “Escolha o tema que quiser. Te dou duas semanas.”

Ninguém mais teve esse tempo. Ninguém mais teve esse voto de confiança.

Eu, que vinha traumatizada, me entreguei inteiramente. Pesquisei, escrevi, refiz, respirei fundo, recomecei. Esperava um zero. Falei por quarenta minutos quando o tempo era dez. Ele me ouviu. Me questionou. Me deixou falar.

Ao fim da aula, quando a turma saiu sem nem olhar para trás, ele pediu para conversar comigo. Preparei-me para o pior, porém, quando a vida te chuta até você ficar inconsciente, é natural ficar com a alma calejada e esperar o pior ser escudo defensivo:

“Você fez um trabalho magnífico.” 

“Seu trabalho estava ao nível de mestrado.” 

“Você tem todo perfil para ser jornalista, já pensou em ser?” 

“Sim, você é uma comunicadora nata. Sabe prender o público, explicar, despertar interesse.” 

“Dá para perceber que você dominou o assunto e fala com um brilho no olhar.”

“Você superou todas as minhas expectativas e as expectativas da turma, todo mundo parou para te ouvir.”

A turma era imatura e vacilona, então ele precisava se impor, sabia muito bem não ser o queridinho deles, no entanto, não se formou para agradar etaristas de plantão. Comigo, no entanto, a expressão era doce, suave, a voz era mansa. Ouvi dele que eu não tinha de me importar em me encolher para caber em panelinha, que eu era madura demais para mendigar amizade de gente tola. 

Em nenhum momento houve segundas intenções implícitas ou explícitas, somente um professor orientando uma aluna e confessando não ter se formado aos 21, nem ter sido o primeiro da turma, mas que estava construindo sua vida mesmo assim, só não no mesmo tempo dos outros.

Um homem que disse que o mundo ainda irá me reconhecer. Que nasci para fazer a diferença. Que minha inteligência é extraordinária demais para ficar presa aos academicismos de professores egocêntricos. Que não preciso de homem nenhum para provar meu valor. Que era alguém. Uma jornalista. Talento que nem um diploma compra.

“Acredito em você. Sei que você vai longe.”

Talvez esse dia não tenha mudado o mundo, nem minha hierarquia na turma. No entanto, mudou como eu me via. Despertou-me a vontade de retornar ao campo de batalha, afinal de contas, silenciar para agradar haters não é coerente com a história de uma joaninha de alma grande.

Ele falava verdades que incomodavam os que se achavam modernos, os “fofos” do grupo que pregavam amor e empatia, mas viviam rindo de quem tinha mais de 25 anos, rindo de sotaques, de dificuldades alheias. Eles detestavam que ele falasse a real: que quem estuda Letras precisa ler. Que um trabalho precisa de estrutura. Que fugir do tema e copiar Wikipedia é desrespeito com a própria inteligência.

Alguém me deu a mão. Um alguém inesperado. Uma pessoa ouviu a minha voz onde muitos preferiam o silêncio conivente.

No fundo, nunca estive sozinha.


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