O dia em que eu dancei com o tempo


Uma crônica pessoal sobre música, presença e o respeito que todo artista merece
Por Mary Luz

🌃 Tudo começou há seis meses

Tudo começou em novembro de 2024. Recebi a notícia de que os Pretenders não apenas fariam uma turnê no Brasil, mas viriam para Curitiba. Não é todo dia que uma das lendas vivas do rock'n roll inclui sua cidade na agenda de shows. Não me perdoaria se deixasse a oportunidade passar. Não teria uma segunda chance — a vida nem sempre nos permite isso.

Tão logo foram iniciadas as vendas dos ingressos, garanti o meu. Agora, restava torcer para o universo conspirar a favor. 20 de maio de 2025 parecia meio distante... Mas os dias passaram. E, por mais bobo que pareça, só me dei conta do que estava vivendo quando aquela sirene tocou dentro do teatro e as luzes foram se escurecendo devagarinho, criando aquela atmosfera etérea.

Aquí é rock'n roll, atura ou surta (Reprodução/Arquivo pessoal da Mary)

Diferente daquela ansiedade que paralisa e nos deixa sem chão, o que a gente sentia era um chamado quente no peito. De quem sabe estar no lugar certo, na hora certa — talvez não num camarote formal, mas com uma vista privilegiada além dos sentidos.

O evento foi extremamente organizado — pelo menos até onde meus olhos alcançaram. Nenhum tumulto, nenhuma espera exaustiva, nenhum ruído fora de lugar. Tudo fluiu com a elegância de quem sabe o que está fazendo. 

Às 21h, pontualmente, a apresentação começou. Sem enrolação, sem teatrinho. Só Chrissie Hynde entrando em cena como quem sabe que não precisa anunciar a própria grandeza. E nos quase 100 minutos seguintes, a energia foi lá para o alto — não de forma explosiva. Foi como uma onda que vai crescendo devagar, até tomar tudo. Era um espetáculo com alma, com história, com coração.


🎭 O teatro, o público e a sensação de estar no lugar certo

O teatro me recebeu com luz baixa e assentos vermelhos, como se quisesse me lembrar: você chegou. Não apenas ao lugar, mas ao momento certo, na hora exata. O público era mais velho. Rosto de décadas, histórias costuradas em vinil, cabelos brancos que dançavam com dignidade. E eu ali, talvez a fã mais nova da noite, sorrindo como quem sabe que está onde sempre quis estar.


🎶 A mistura das eras e a dança com o tempo

Chrissie abriu a noite com faixas recentes — talvez pra lembrar que a estrada continua, que o presente também pulsa, que a história ainda está sendo escrita. E então, com uma ordem que parecia mais intuitiva do que cronológica, ela foi misturando pérolas novas e clássicos consagrados, como quem costura um vestido de lembranças e reinvenções. Passado e presente se deram as mãos, e a gente dançou no meio do caminho — entre o ontem que aquece o peito e o agora que ainda surpreende.

🔥 O fogo que veio de 1984

E se teve um momento em que o tempo perdeu a compostura e resolveu dançar de verdade, foi quando a banda atacou com as faixas de Learning to Crawl. A plateia — que até então só balançava discretamente os pés — levantou como se tivesse voltado aos anos 80 num passe de mágica.


Do álbum, vieram:

  • Time the Avenger

  • Middle of the Road

  • Back on the Chain Gang

  • My City Was Gone

  • Thumbelina

Cada uma trouxe uma camada de energia, memória ou ternura. Até Dance, que não entrou no set, parecia ecoar nos passos do público. Porque ali, a gente não estava só ouvindo música. A gente estava vivendo história.



👢 Rock não tem idade. E nem prazo de validade.

O que mais me emocionou foi olhar ao redor e ver que a maioria ali tinha mais de 50 anos. Homens e mulheres que cresceram com vinil, que viveram a era das guitarras suadas e das letras sinceras. Deram um olé no etarismo e mostraram por que o rock’n roll continua sendo a verdadeira fonte da juventude: quanto mais o tempo passa, mais valor ele tem. Ele não envelhece — ele amadurece. Como vinho bom. Como gente que sabe quem é.

E por isso mesmo, fica a crítica: a divulgação foi desproporcional. Uma banda do quilate dos Pretenders merecia dois dias de Teatro Positivo lotado. Enquanto o Country Festival infesta a cidade com outdoors e anúncios pagos, Chrissie Hynde chegou com a elegância de quem só pediu uma coisa:

“Por favor, não acampem na frente do hotel.”

Ela não rejeitou fãs. Cuidou. Por saber que tem gente que se perde tentando provar amor — falta no trabalho, entra em dívida, causa confusão em casa. Chrissie não quer esse tipo de sacrifício porque não precisa de altar — só quer palco. Quer que a gente admire a arte, não que se perca tentando ser visto por quem já nos nota pela presença.

A Avril Lavigne, como a Chrissie, nunca prometeu ser a melhor amiga de ninguém. Elas são artistas. Entregam arte, talento, carreira consistente, e isso já é imenso. Quando elas se protegem, seja por segurança, saúde emocional ou até desconforto com a superexposição, vem a patrulha do “ela é metida”, como se carinho só existisse quando é correspondido com selfie sorridente e abraço coletivo.

E sabe o que mais? Tem homem roqueiro que NUNCA deu atenção pra fã e é tratado como “recluso genial”. Quando é uma mulher, ela é chamada de grossa.


💔 E quando o fim chegou...

Quando Chrissie Hynde cantou I’ll Stand by You, senti-me como se tivesse sido convidada para dançar com o tempo. E dancei. Dancei com os ombros, com o coração, com os olhos marejados. A fileira era só minha, como se o universo quisesse dizer: vai, esse pedaço é teu.
No fim, veio aquela pontada. A saudade do que mal tinha terminado. A vontade de segurar o tempo pela gola e pedir mais uma música, mais um refrão, mais um instante.
“Já?”, pensei. “Mas começou agora há pouco...”
Só que não. O relógio dizia quase 100 minutos. E mesmo assim, parecia ter durado um sopro.
Era nítido o deslumbre dos espectadores após a apresentação, aquele sorriso pleno e grato de quem viveu uma noite inesquecível e, sim, registrou tudo com as câmeras dos smartphones. Porque vai além de um simples story, é um pedaço da história de cada um de nós, da história desta banda, do legado dela pelo mundo, da história do rock...


🖤 Gratidão é presença, não cobrança

Eu não sou o tipo de fã que precisa provar que ama mais.
Não fico acampada.
Não preciso de autógrafo nem selfie no feed.

Já sou grata por ter visto a Chrissie tocar.
Seria grata de ver a Avril também, um dia.
E isso basta.

Ver uma artista no palco, inteira, autêntica, entregando o que veio entregar — a arte — é mais do que suficiente.
Não precisa bilhete.
Não precisa hotel.
Precisa respeito. E presença.

Eu não sabia que estava prestes a viver uma pequena eternidade numa terça-feira comum. Que bastava vestir um All Star cor-de-rosa, retocar o batom e guardar o ingresso no bolso da esperança para que o mundo começasse a girar em outra rotação onde me encontro com a minha tribo de alma e descubro que nunca estive sozinha. Que existem outros "alienígenas" que não curtem sofrência. Por mais foda que seja entrar no Uber e ser bombardeada com alguma dessas cantoras favorecidas por autotune, cantando letras vazias de nexo.
O tempo voou, mas voou bonito. Voou como voam as coisas que marcam a alma e deixam rastro. Valeu a espera, valeu cada centavo investido, valeu cada passo até o teatro. Porque naquela noite, mais do que assistir a um show, eu vivi um encontro com a música, com a história, e comigo mesma. E saí de lá com o coração cheio — de som, de brilho e de memória boa para guardar para sempre.

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