Houve um tempo em que a infância cabia num sofá. Num copo de Toddy gelado, numa coberta remendada, num controle remoto brigado entre irmãos. E a televisão não era só ruído — era refúgio, era alegria, era companhia.
No auge dos anos 90, ainda era possível sonhar acordada com uma nave que levava a Xuxa para o espaço, ou com uma redação comandada por cães jornalistas — a lendária TV Colosso. E se você cresceu ali, entre a programação infantil da Globo, SBT, Cultura e Manchete, você sabe do que estou falando. Tínhamos opções.
Xuxa, TV Colosso e a magia que se perdeu
Gostando ou não da Xuxa, é preciso reconhecer: ela criou um universo. Era mais do que produtos licenciados. Era mais do que Paquitas. Tinha a nave, o Dengue, os roteiros surreais, os quadros malucos, a trilha sonora, a emoção real. Uma geração queria participar das gincanas e mandar beijos para todos no microfone da rainha dos baixinhos.
Quem viveu a TV Colosso sabe: Priscila era uma diva. JF era um mito. E a ideia de um programa de televisão feito por cachorros era tão boa, tão brasileira, tão única, que parece mentira ter existido mesmo.
Eu, criança, ficava encantada. A sala da minha casa virava estúdio. O sofá, minha plateia. E eu… eu era feliz, mesmo sem saber.
Rocko, Vacão e o mundo moderno que já era louco
Um dos desenhos mais subversivos que passaram na minha infância foi “A Vida Moderna de Rocko”, transmitido na Nickelodeon e, depois, até no Bom Dia & Cia por um breve tempo.
Rocko era um wallaby tentando viver uma vida comum num mundo desajustado. O Vacão era aquele amigo folgado, adorável e com o melhor efeito sonoro de peido da televisão. Aquela sapa de batom era o símbolo da fofoca fantasiada de decência.
E o Felisberto? A tartaruga pessimista que murmurava desgraças com a maior naturalidade? Quem precisa de Pollyanna e sua positividade tóxica quando se tem Felisberto? Ele não disfarçava, não maquiava, não aliviava. Só soltava um “isso não vai prestar” e seguia sua vida.
Era escrachado, sarcástico, adulto sem perder a ternura. Hoje em dia, dificilmente um desenho assim passaria despercebido — ou sequer seria aprovado. Vivemos a era da pisação em ovos e da vozinha aguda que não diz nada.
Entre marteladas e risadas: os reis do absurdo
Mesmo entendendo que crescemos, que não somos mais o público-alvo da programação infantil, é impossível não sentir falta daquele humor que nos fazia rir sem precisar de piada pronta.
Pica-Pau era maluco, debochado, sem noção. E justamente por isso era brilhante. Tinha aquela fase clássica com traço torto e risada psicótica que ninguém esquece. Era o anti-herói, o sem-vergonha, o trapaceiro — e nós amávamos mesmo assim.
Pernalonga, com aquele jeitinho debochado, subvertia a lógica da caça e fazia os adultos passarem vergonha. Era o mestre da ironia e do travestimento, muito antes de qualquer militância.
Patolino, Frajola, Coyote, Papa-Léguas... Todos tinham aquela pitada de desespero cômico, aquela mistura de esperteza, azar e timing perfeito, que nos fazia rir alto com um senso de absurdo delicioso.
Torcíamos para o Coyote, mesmo sabendo que ele ia falhar. Queríamos que o Frajola engolisse o Piu-Piu só uma vez. E, vá lá, tinha um desejo secreto de ver a Equipe Rocket capturar finalmente o Pikachu.
Dos animes à TV Cultura: uma geração apaixonada por histórias
Antes de Naruto dominar os memes e os streamings, houve uma era dourada nas manhãs e tardes da televisão aberta: a era da Manchete.
Quem foi criança nos anos 90 talvez nem soubesse que estava assistindo “animes” — só sabia que era diferente, mais intenso, mais dramático. Cavaleiros do Zodíaco, Sailor Moon, Shurato, Yu Yu Hakusho... A Manchete não apenas exibiu, formou uma geração de otakus sem saber.
E no extremo oposto da gritaria e das lutas cósmicas, tínhamos o refúgio da TV Cultura: Castelo Rá-Tim-Bum, Mundo da Lua, Glub Glub, Cocoricó. Suaves, lúdicos, inteligentes sem jamais tratar a criança como tola. Tinham uma estética própria, um jeitinho brasileiro de ensinar e encantar.
Doug Funnie também deixou sua marca. Não era engraçadão. Nem bonito. Nem descolado. Ele era... real. Tinha um cachorro chamado Costelinha e sonhava com a Patty Maionese. Era como se morasse na nossa rua.
Fofuras, desespero e filosofia de sofá
Tínhamos desenhos com alma, mesmo os mais simples. Get Along Gang e Cãezinhos do Canil nos mostravam que dava para ensinar empatia sem pieguice.
Rugrats (“Os Anjinhos”) era sobre bebês — mas não era bobinho. As aventuras eram mais filosóficas que muita série adulta, sem nos subestimar.
Bob Esponja: o último grande
Com sua voz esganiçada e calça quadrada, Bob Esponja apareceu no meio do caos. E sobreviveu.
Lula Molusco? O trabalhador exausto. Seu Siriguejo? O patrão explorador. Bob? O funcionário tão feliz que parece distópico.
O capitalismo não poupa ninguém no fundo do mar.
Mundos mágicos e lembranças eternas
Caverna do Dragão. Cavalo de Fogo. He-Man. Todos têm em comum algo raro hoje: alma. Mesmo com limitações, emocionavam.
Anos 90: um caos carismático chamado infância
Cantamos com os Mamonas Assassinas. Choramos por eles. Perdemos o Ayrton Senna e sentimos como se fosse da família. Vibramos com o Tetra.
Tínhamos medo do Mascarado, assistíamos Mister M, Linha Direta, Aqui Agora. A Gilette cantou “Short Dick Man” no Xuxa Park e seguimos firmes.
MTV, Disk MTV, pedir música na rádio e torcer para o locutor não falar em cima. Só quem viveu sabe.
O outro lado da década
Mas não foi só magia. Havia guerras, tragédias, desastres, planos econômicos. Novelas de sucesso. Novelas que não emplacaram. O fim da Manchete. A vinheta do Plantão.
E mesmo com tudo isso, por isso mesmo, deixou saudade.
Respirar ainda é preciso
Crescemos. Pagamos boletos. Fingimos maturidade.
Volta e meia, porém, tudo que queremos é um sofá, um travesseiro e 23 minutos de nostalgia.
Porque ser adulto não devia significar matar a criança que fomos.
Nem que fosse uma vez por mês. Ou por semana. Ou, pelo menos, no coração — onde a Priscila da TV Colosso ainda apresenta as notícias, o Vacão ainda solta aquele peidinho cômico no fundo, e o Bob Esponja ainda acredita que trabalhar no Siri Cascudo é o melhor emprego do mundo.
E talvez, só talvez... trocar as crises de ansiedade por crises de riso.
✨Ô loco, meu.
Postado com afeto por OCDM.
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