Antônio e Veridiana voltaram a se encontrar. Elis era a única que guardava aquele segredo, sussurrando para que as paredes não amplificassem outra desilusão de Margarida.
— Maninha, as fuxiqueiras da cidade estão entretidas com os galãs sertanejos, mas, sendo como for, nossa mãe pode ficar sabendo disso.
— Eu sei, mas gosto do Antônio.
— Ele te abandonou quando você mais precisou dele.
— Ele não me abandonou.
— Que nome se dá àquilo que ele fez contigo?
***
Antônio e Veridiana estavam namorando quando perderam a virgindade e o rapaz foi convocado pela universidade a participar de um intercâmbio na Islândia. Concorrendo a apenas uma vaga com mais de cinquenta inscritos, o conquistador desastrado foi o único selecionado no estado. Era uma chance imperdível não apenas pela oportunidade de conhecer outro país, mas pelo acréscimo no currículo, pelas experiências, a sonhada independência. A irmã de Elis não reagiu bem à notícia, porém apoiou o namorado, embora escondesse dele a grande bomba: sua menstruação atrasada já era uma gravidez confirmada.
No último encontro Veridiana estava indiferente, retribuindo os beijos por obrigação, calada.
— Vamos ficar tanto tempo sem se ver e você não me diz nada.
— Você já fez suas escolhas, Antônio.
— Isso não quer dizer que eu não goste de você. Antes mesmo de te conhecer eu já sonhava com esse intercâmbio, lutei muito para ser um dos selecionados…
— Eu não estou te impedindo de correr atrás do seu sonho.
— Sei que você não quer ficar longe de mim, eu também não quero ficar longe de você, mas um dia, quando formos embora dessa cidade, você irá me agradecer por todos os sacrifícios que estou fazendo, não só por mim, pela minha família, mas por você também.
Veridiana sabia que por trás daqueles óculos pesados existia beleza. Não escolheu Antônio por nenhum atributo em especial, mas porque ele fazia com que ela se sentisse bem. Ele era desajeitado, sem nenhuma habilidade para contar piadas, alguém que na adolescência pouco se divertiu, como ela.
— Promete para mim uma coisa, Veridiana, querida?
— Fala…
— Promete que vai tentar aguentar firme esse tempo todo até eu voltar?
— Prometo.
— Não senti muita firmeza nas suas palavras.
— Como se fosse fácil ficar longe de você.
— Não vai ser para mim, imagina para você.
Veridiana abraçou Antônio pela última vez e enfrentou a fúria de Margarida ao contar que esperava um filho do namorado. Ser mãe solteira naquela cidade ainda era a maior vergonha que uma família tradicional poderia sofrer. Divórcios eram execrados. Omitido o intercâmbio, construiu-se a (equivocada) fama de cafajeste do rapaz que jamais soube da existência da filha.
****
— Veridiana, você escondeu a verdade do Antônio?
— Eu não iria arruinar os sonhos dele na véspera.
— Ele não sabe que a Jéssica é filha dele?
— Nem lhe passa pela cabeça.
— E você não acha que está na hora de enfrentar todo mundo se vocês se gostam de verdade?
— Não terá perdão!
— Só não terá se você continuar escondendo todo esse mistério, irmã. Falo por mim, não é vida ficar sufocada, cheia de segredos. Pelo amor de Deus, nossa mãe não é um monstro, é só uma mulher que teve o desprazer de ser criada sob costumes muito repressivos, mas acredite, ela está mudando e se você a ama pelo menos um pouco, deve ser honesta.
— Sei que devo me preparar para o pior.
— Pior só vai ficar se você se esconder de si mesma.
— Sabe, Elis, eu nunca pensei que um dia a gente iria conversar tão abertamente sobre essas coisas.
— Eu também não, mas a vida sempre trata de nos surpreender.
— Que o diga você, que era toda menininha, encabulada e desabrochou, virou um mulherão.
— Simplesmente comecei a valorizar o meu primeiro amor.
— O Léo?
— Não. A mim mesma. Gosto de mim o bastante para poder gostar de alguém.
— Mas e quanto a você e o Léo? Todo mundo sabe que você sempre gostou dele.
— Sempre gostei da ideia de gostar dele, não de quem o Léo era, ou melhor, é. Eu gostava daquele Léo que era meu herói, me salvava das chacotas na escola, das noites de solidão, mas entendi que ele não poderia me salvar de ser quem sou, que assim como eu, também tem dúvidas, medos, angústias, defeitos. O Léo da minha imaginação não falava, não agia, era a mim moldado, existindo lá nos meus sonhos, não na realidade. Amar assim é chato. Não tem toque, não tem luta, é um sonho o qual ele nunca tomou conhecimento e mesmo que tomasse, não estávamos em sintonia.
— Você o esqueceu, é isso?
— Minha cabeça está confusa demais para te responder.
— Eu te via tão frágil, indefesa, sempre escondida naqueles moletons largos, sem expressão e agora te vejo tão decidida, tão madura. Será que eu nunca te percebi de verdade?
— Antes costumávamos brincar de boneca juntas; andar de bicicleta, subir nos pés de ameixa da mãe do Matt e depois negar tudo, fazer piquenique na cachoeira, entrar no quarto da Pati para ler os diários dela, mas depois você encontrou suas amigas, começou a namorar e foi me esquecendo. Eu também fui me distanciando, isolada no meu mundinho particular, como se isso não fizesse mais diferença, sempre sentindo saudades da sua amizade que me fazia tanta falta…
— Eu sempre te admirei tanto, Elis. Você não desistiu de ser médica, né?
— Nunca.
— Sei que você vai ser uma grande médica algum dia.
Elis e Veridiana estariam sempre unidas pelas boas lembranças de uma infância feliz e bem aproveitada.
— Se você não souber o que fazer, peça orientação à sua intuição. Ela nunca falha.
Foi o melhor conselho que Veridiana recebeu.
****
— Diga-me o que quer, Veridiana. — Margarida gostava de assistir televisão no quarto e só desligava quando o talk show de entrevistas acabava. Estando aposentada, restava-lhe aproveitar as noites, o antigo emprego a obrigava a dormir cedo.
— Precisamos conversar.
— Tem de ser agora?
— Eu poderia esperar até de manhã, mas já esperei tempo por demais, mãe. — Veridiana sentou-se na cama da mãe.
— Não me diga que está grávida de novo, Veridiana? Quando é que você colocará essa cabeça oca no lugar? Eu já estou farta de te dar conselhos e você desperdiçá-los.
— A senhora não sabe da verdadeira história.
— O que sei a seu respeito já me basta.
— A senhora precisa me dar essa chance de falar.
Margarida abriu a primeira gaveta do criado-mudo, alcançando com um dos braços a cartela de calmantes, ingerindo um e engolindo-o com o auxílio de um copo de água.
— Quando você vem me contar suas bombas, penso até quando meu pobre coração vai aguentar ser maltratado.
— Essa pode ser a última vez que eu te incomode.
— Que assim seja, Veridiana, pois estou no meu limite com você.
— É sobre Antônio.
— Sabia… — Margarida deu um muxoxo, contrariada. — Sabia que boa coisa não era…
— Espere eu terminar de falar, mãe. Por favor… — Veridiana colocou-se de joelhos diante da mãe, no auge da submissão.
— Anda se encontrando com aquele traste depois de tudo o que ele te fez?
— Ele nunca me fez nada.
— Apenas te deixou grávida para ser a piada da cidade… Acha pouco?
— Antônio não sabe da existência de Jéssica.
— Como é?
Margarida sentiria o coração parar.
— Você está tirando sarro da minha cara a essa hora da noite.
— Não, não estou!
— E que brincadeira é essa?
— Tenho 26 anos, mãe, não 16.
— Você passou por cima da minha ordem e voltou a falar com esse rapaz depois de tudo que ele te fez passar.
— Passei por tudo sozinha. Ele nunca soube nem de metade do que enfrentei nesses anos todos.
— Você me decepcionou mais uma vez, Veridiana.
— E você também me decepciona quando passa por mim e faz que sou uma estranha.
— Você deixou de ser minha filha faz muito tempo.
— Isso não é possível.
— Nada do que você faça pode me afetar. Você já me decepcionou o suficiente, Veridiana. Agora, por favor, deixe-me dormir se minha vida vale de algo para você.
— Será que em algum momento você se colocou no meu lugar? Como filha, sempre te respeitei, mesmo quando você faz com que eu me sinta desse tamanho..… Veridiana gesticulou, banhada em lágrimas, a atenção da mãe, um descanso no desprezo infinito. — Será que morri aí dentro de você? Será que não há mais nenhuma chance de você olhar para mim um pouquinho que seja?
— Eu tinha tantos sonhos para você, Veridiana. Eu acreditava que você seria uma grande psicóloga e faria aquelas velhas bruxas da família do seu pai calarem a boca, mas em vez disso você me afundou na vergonha.
— Só porque eu me entreguei a um homem que amo? Fiz o que qualquer pessoa apaixonada faz, vivi esse sentimento, me doei para ele. Eu o amei na forma mais genuína de ser, quando os dois corpos se encontram, mas acima de tudo as almas se comunicam. Jéssica é o fruto disso.
— Não me venha com romantismo de livros porque estou sem um pingo de paciência para isso, Veridiana Diniz.
— Por que é tão difícil assim me entender?
— Porque eu já nem sei mais quem você é.
— Antônio partiu para a Islândia sem saber que eu estava grávida da Jéssica. Ele nem sequer imagina que eu seja mãe de um filho dele.
— Essa é a maior bobagem que eu já ouvi na vida.
— Mas é a verdade.
— Ele faz um filho em você e vai viajar como se nada tivesse acontecido?
— Eu já disse que ele nunca desconfiou.
— Ele é um bronco, manipulador, descarado.
— Ele não é nada disso.
— Pobre de você, tão facilmente induzida… Lamento…
— Antônio não conhece a Jéssica, não tem noção do que aconteceu enquanto esteve ausente. Eu não disse a ninguém que Jéssica é filha dele, apenas Elis, você e eu sabemos.
— O que é pior, pois a cidade inteira pensa que esse filho é de um qualquer.
— E por acaso alguma das fofoqueiras trocou uma fralda da Jéssica? Pouco me importa o que essas mulheres comentam a meu respeito.
— Você teve tanta consideração comigo que preferiu ir morar com seu pai depois de tudo que ele fez contra mim.
— Ele teve muito mais cabeça que você quando eu pedi ajuda. Ele não me deixou chorando debaixo de chuva quando contei que estava grávida, ele não amaldiçoou o bebê que estava dentro da minha barriga, não deu ouvidos aos comentários da Isaura e sua corja, ele me acolheu na casa dele e cumpriu o seu papel com muito primor. Você, que é minha mãe e deveria passar por cima de tudo e todos para me defender, não fez nada por mim. O desprezo foi a sua resposta ao meu abraço, a todos os meus gritos de socorro.
Margarida fazia das filhas um escudo contra o ex-companheiro, demonizando a figura dele com atritos mal resolvidos, as mágoas que culminavam em pequenos transtornos para a alma, os comprimidos ingeridos com hora marcada. O jogo de manipulação prendeu Elis e Patrícia, mas nunca fez de Veridiana uma refém, a ovelha negra.
— Quando saiu o resultado do exame de sangue, era também o último dia dele aqui na cidade, ele estava tão empolgado com o intercâmbio, fazendo mil planos para a volta, me pedindo para ter paciência porque logo estaríamos juntos de novo. Se ele fosse esse mentiroso sem vergonha que você acha que ele é, eu estaria ao seu lado, embora de qualquer forma estivéssemos unidos eternamente pela Jéssica. Isso ninguém poderá mudar.
— Você escondeu isso dele esse tempo todo?
— Eu me sentiria muito egoísta se forçasse Antônio a abandonar o maior sonho dele que era conquistar a vaga para o intercâmbio na Islândia. Ele lutou muito para ser um dos selecionados, não haveria outra oportunidade para ele ir por si só. Cogitei contar toda a verdade, mas vendo-o tão empolgado com a ideia de viver em outro país e acumular conhecimento, deixei para lá. Eu gostava tanto dele que priorizei sua felicidade abrindo mão da minha própria, do meu sonho que era me formar em Psicologia. Nessa história perdi muita coisa, mas sei que fiz o certo.
— Você se tornou piada na cidade.
— Piada porque amei de verdade e abri mão do meu sonho para que alguém que amo realizasse o seu? Sabe o que eu acho? Que essas velhas mal amadas que ficam falando de mim nunca se apaixonaram, são tão vazias que precisam falar dos outros porque as estrelas estão apagadas. No julgamento das nossas vidas contará de verdade não quantas vezes fui para a cama ou saí à noite, e sim o quanto eu amei. Tenho certeza de que amar não é pecado. E se for, eu já pequei e não sei se posso pedir perdão porque continuarei pecando, certa de que amar me deixa feliz, me traz toda a esperança que eu havia perdido pela vida, por mim.
— Mas aquele traste, minha filha.
— Antônio não é um traste, mãe. Ele é uma boa pessoa, só precisa de uma chance.
— Você pretende mesmo contar a verdade a ele?
— Sim.
— Vai precisar se preparar. Pode ser que ele se sinta traído, mas saiba, minha filha, que você tem o meu apoio para falar. A Jéssica precisa do pai. Toda criança precisa do amor de um pai.