O dia em que ‘AUTORIZASSÃO’ quase virou caso de polícia
Por Tita
O ano era 2003, o segundo do Ensino Médio. Fevereiro, o pior mês para uma roqueira no auge da adolescência (ou aborrecência para os pais) viver em solos tupiniquins, mesmo que Curitiba nunca tenha sido um dos points para quem curte folia. Todo ano a lesma lerda, enquanto no Dia Mundial do Rock, nada de atenção. Eu não aguentava mais.
Quando o Carnaval cai em março, o primeiro feriado para valer fica para abril, cujos nativos talvez vivam o mesmo dilema da galera nascida em dezembro, ganhar um presente de aniversário + [data comemorativa da vez], no caso, Páscoa e Natal, respectivamente.
Cheguei à escola querendo trucidar o primeiro que me aparecesse com um sorriso na cara. Ninguém tinha culpa se minha vida era uma sucessão de provocações, mas eu estava para o crime naquele dia. Guilherme bem deve ter percebido, tanto é que por ser mais velho e experiente que eu, propôs o irrecusável.
— Qualquer coisa para não passar o Carnaval em casa. Fala aí. — É bizarro, meio intrigante, mas vale a pena tentar.
A proposta era bastante infundada, eu não apostava nada naquela barca furada. Entretanto, da forma exposta pelo meu namorado, mergulhei nos argumentos dele e até arrisquei uns palpites.
— Esse trabalho tem que valer nota no boletim. Aliás, um ponto na média em todas as disciplinas. — Seus pais são do tipo glutões por notas? — Guilherme riu com malícia. — Ah, se são. Quer dizer, a minha mãe é. Não admite notas abaixo de 80 e ainda joga na minha cara aquele 65 em matemática do último bimestre do ano passado. — Quem não vier recebe falta nos quatro dias e perde nota no boletim. — Ele sorriu com o canto dos lábios.
Eu devia estar rindo alto para que Júlia e Rodrigo se aproximassem de mim, querendo saber qual era a piada engraçada. Muito me surpreendeu que até Andréa, a sensata, aceitasse fazer parte do nosso complô. Na terceira aula, os metaleiros amigos de Guilherme, Ricardo, Priscila e Paloma estavam reunidos conosco. Todos intercedendo pela mesma causa.
— Você me permitiria ter uma conversinha com a turma, Gutierrez? — solicitou. — Prometo que será muito breve!
— Leve o tempo que precisar. — assentiu o professor.
— Bom dia.
A ironia explícita de Raimunda delimitava que de breve aquela conversa não teria nada.
— Pois bem, turma. Vocês sabem o que me traz até a essa classe logo no primeiro horário, não sabem? Presumo que o silêncio diz tudo que me basta saber. — Raimunda ganhava fôlego marchando de um lado a outro do tablado.
Nem uma visita da lendária Trunchball dava tanto medo quanto a aparição de Raimunda no batente da porta. Os passos secos até se posicionar ao centro da sala e iniciar o sermão. Um berro dela deixaria a diretora da Matilda acuada e de cócoras num canto, era tão estridente que nem uma gazela em pânico ousaria competir. Era seco, agudo, capaz de fazer o sol se esconder, os vidros do ambiente tremerem e as pombas do telhado mudarem de CEP.
— Já dizia um velho ditado que não existe crime perfeito. Tanto disse o ditado que estou aqui nessa sala com a certeza de que o culpado ou a culpada está diante de meus olhos. O que me trouxe aqui, especialmente, foi um agravante que por si só me aterrorizou muito mais do que a chuvarada de telefonemas de pais desesperados.
Gutierrez e Raimunda cochicharam e o professor tirou uma papel dobrado do guarda-pó. Abriu a caixinha onde ficava seu apagador, tirou um giz branco e começou a escrever no quadro-negro.
Rodrigo, o sem noção, levantou a mão.
— É pra copiar, fessor? — Não. — Gutierrez respondeu, contrariado. — É matéria nova? — Cristina perguntou. — Não é matéria nova. — Gutierrez seguiu para a carteira onde apoiou o material de trabalho e seguiu nos fitando, em silêncio. — Gostaria que observassem com muita atenção.
Andréa foi a primeira a se manifestar.
— Pois não. — pronunciou-se Raimunda. — Autorização não é com cedilha? — Também acho, professor. — Priscila percebeu o erro de português que nos custou caro. — Quem é que escreve autorização com “ss”? — Júlia indignou-se com aquela falha crassa e de tremenda falta de estética. — Nessa classe há uma pessoa que escreve autorização com ss. — declarou Gutierrez.
A turma caiu na gargalhada.
— Não é motivo de piada. — Raimunda frisou, revoltada. — Isso não é motivo de piada. — O tom enérgico fazia as risadinhas cessarem. — Ao invés de estarem dando gargalhadas, deveriam ter vergonha. — Ao que indicam as circunstâncias, o autor das autorizações não tem dado muito valor às minhas aulinhas.
Rodrigo abaixou a cabeça.
— Eu pensava que minha didática era atrativa e interessante, mas devo estar equivocado, por que não? Ou será que a nova ortografia já entrou em vigor e eu estou desatualizado? Talvez o autor das autorizações possa nos esclarecer alguns detalhes bastante importantes sobre a reforma ortográfica. Sou professor de Língua Portuguesa há mais de 20 anos, procuro me manter atualizado nos neologismos, nas expressões em desuso, mas numa dessas deixei essa regra passar e não sou um professor arrogante que pensa saber mais que vocês. Muito pelo contrário. Dentro dessa sala há um equilíbrio de conhecimento. Compartilho com vocês o que aprendi ao longo da vida estudantil e vocês me ensinam também. É assim que tem de ser. Eu não estou no direito de me julgar o “dono do mundo”. Que o autor das autorizações não se envergonhe de vir aqui me dar uma aulinha.
Gutierrez estacionou em um canto do quadro-negro e cruzou os braços.
— Autorizassão, com SS. Isso aqui é um palavrão!
Raimunda voltou-se para mim imediatamente.
— Você teve a ideia das autorizações ilícitas? — Raimunda ergueu uma das sobrancelhas, num sinal de incredulidade total. — Sim, diretora. Fui eu... Mas que uma coisa fique bem clara: o erro de português não foi meu. — Agora tira o seu da reta. — Guilherme finalmente se manifestou. — Eu disse que não era uma boa ideia deixar o Rodrigo escrever! Eu avisei! — disse Andréa.
O esquema tinha tudo para ser, de fato, um crime dito perfeito, salvo pelo erro grotesco de Rodrigo. Uma vez que a cópia do documento ficou no computador da escola, outros jovens com “espírito de porco” imprimiram em larga escala. Cá entre nós, quem leu atentamente às cláusulas encontrou todas as redundâncias escritas por Rodrigo Rios Carrasco, negando a permissão por um motivo lógico.
Meu modelo de autorização tinha cabeçalho, o nome da escola, estava redigido na norma culta, sem gírias nem abreviações, sucinto e esclarecedor. Qualquer um teria confiado em mim ou em Júlia para o êxito dos planos, mas já era tarde demais para apontar culpados.
Cabia a Raimunda ter uma reação rápida, desmentir a versão dos fanfarrões e aconselhar pais e responsáveis dos estudantes menores de idade, a fim de evitar uma tragédia que lhe custasse um processo administrativo ou até, indo mais longe, uma exoneração.
Raimunda tirou do bolso da calça o modelo de Rodrigo.
— Essa folha foi encontrada no cesto de lixo da biblioteca. — Ela desamassou a folha e meu coração naquele momento batia tão forte que eu podia ouvi-lo. — Eu te disse para jogar fora, Ricardo. — Rodrigo ralhou com o amigo. — Esse garrancho deveria ser a minha assinatura, não é? — inquiriu a diretora.
Aquilo não estava nos planos.
— Pensei que com a assinatura ia convencer mais. — Rodrigo se sentia o próprio Al Capone. — Como se não bastasse a formação de quadrilha juvenil, o assassinato da norma culta com requintes de crueldade e motivo torpe, falsidade ideológica. Esse caso deveria parar na polícia, para as autoridades decidirem a melhor punição para os delinquentes que estudam nesta honrada instituição de ensino. Isso é vandalismo e vocês vão ter que pagar.
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Releitura de Raimunda, feita por IA |
De qualquer forma, o couro comeria nos nossos lombos, no sentido literal. Raimunda decidiria nosso destino na volta do feriado e prometia uma punição exemplar para a quadrilha que matou a norma culta. No fim, o que restou foi a palavra marcada com um X gigante no quadro-negro. E uma moral que nunca mais esqueci:
- Nunca subestime as advertências de Andréa Gutierrez.
- Nunca confie em Rodrigo Rios Carrasco para digitar nada.
- Pode até não existir crime perfeito, mas não custa nada ter o mínimo de discrição para evitar passar uma vergonha ainda maior do que ser descoberto.
- Não confie em gente que pula fora do barco e deixa o grupo à deriva.
Comentários da Malacubaca:
- “AUTORIZASSÃO” é um palavrão cabeludo. Não façam isso em casa, crianças!
- O berro de Raimunda poderia aposentar técnicas duvidosas para obter confissões de prisioneiros perigosos, que contariam até os crimes que nem cometeram para se livrarem. No volume 30. Se mentir, aumenta para 40, 50... até o pavilhão se autoimplodir.
- Raimunda 1 x Curtição na praia 0.
- Será que esse episódio supera as trapalhadas de Edu Meirelles para fugir do Carnaval? É o que veremos!
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