O que aconteceu em 24 de maio de 1866 — e por que essa data virou nome de rua (mas nunca de luto nacional)
Por Mary Luz
Em muitas cidades brasileiras, inclusive Curitiba, existe uma Rua 24 de Maio. Muita gente passa por ela todos os dias sem saber que carrega o nome de uma das batalhas mais sangrentas da história da América Latina: a Batalha do Tuiuti, travada durante a Guerra do Paraguai.
Neste post, vamos entender o que foi essa batalha, por que ela marcou a guerra, e como o Brasil entrou num conflito que quase destruiu um país vizinho — mesmo já devendo até os fundilhos das ceroulas para a Inglaterra.
Antes do sangue, o cenário: quem eram os países que entraram em guerra?
No início da década de 1860, a América do Sul era um tabuleiro geopolítico instável. Disputas territoriais, intervenções estrangeiras e um certo ar de imperialismo local inflamavam relações entre vizinhos. A Guerra do Paraguai — que explodiria oficialmente em 1864 — foi o resultado de anos de tensão, alianças oportunistas e interesses nem sempre confessados.
Brasil
O Império do Brasil era o maior em território e o mais endividado financeiramente. Governado por Dom Pedro II, sustentava uma imagem de estabilidade, mas:
- Sua economia era sustentada por latifúndios escravistas e exportação de café;
- Devia pesadamente à Inglaterra, seu maior financiador;
- Não possuía um exército nacional profissional — temia que isso ameaçasse a monarquia;
- E era, entre todos os países envolvidos, o único que ainda mantinha legalmente a escravidão como base de sua sociedade.
Paraguai
Governado por Solano López, era pequeno, mas autônomo. Não devia nada a potências estrangeiras e apostava num modelo de desenvolvimento interno:
- Fábricas, ferrovias, estaleiros, telégrafos e escolas públicas;
- Um Estado centralizado e soberano;
- Um exército bem treinado e organizado;
- Um projeto de nação que incomodava muito mais pela independência do que pela força militar.
Argentina
Saída de uma série de guerras civis, buscava consolidar seu poder sob a liderança de Bartolomé Mitre. O Paraguai era visto como um entrave para o controle dos rios e do comércio regional.
Uruguai
Vivia uma guerra civil entre os Blancos (aliados do Paraguai) e os Colorados (apoiados pelo Brasil). Quando o Império interveio militarmente no Uruguai, Solano López reagiu — declarando guerra ao Brasil e iniciando a tragédia continental.
Escravidão: a mancha isolada do Brasil
Entre todos os países que se enfrentaram, o Brasil era o único que ainda escravizava legalmente pessoas.
Enquanto o Paraguai, a Argentina e o Uruguai já haviam abandonado o modelo escravista, o Império ainda sustentava seu poder sobre os corpos negros.
Durante a guerra, o Brasil prometeu liberdade a escravizados que se alistassem, mas muitos foram esquecidos, morreram em combate ou nunca chegaram a receber alforria.
"O Brasil entrou na guerra para defender sua honra. Mas com correntes nos pés de quem lutava por ele."
Como se formou a Tríplice Aliança?
1. Tudo começou no Uruguai
O Brasil interveio militarmente em 1864 para apoiar os Colorados no Uruguai e proteger seus interesses econômicos. Solano López, que apoiava os Blancos, considerou a ação brasileira uma ameaça regional.
2. O erro de López: invadir o Mato Grosso e a Argentina
López respondeu invadindo a província de Mato Grosso (Brasil) e, depois, a Argentina, ao tentar atravessar seu território para atacar o sul brasileiro. Esse movimento selou a aliança entre os três países vizinhos.
3. O Tratado da Tríplice Aliança
Assinado em 1º de maio de 1865, o tratado previa:
- A rendição total de Solano López;
- Indenizações de guerra;
- Controle da navegação fluvial;
- Redesenho do poder regional.
4. Aliança de conveniência
Apesar de unidas, Brasil, Argentina e Uruguai tinham objetivos distintos e desconfiavam umas das outras. A aliança funcionou mais por necessidade do que por afinidade.
“A Tríplice Aliança não nasceu da amizade — nasceu do medo e da oportunidade política.”
A imprensa no Brasil e no Paraguai durante a guerra
A imprensa brasileira era patriótica e pouco crítica. Alinhada com o Império, exaltava o exército e Dom Pedro II, silenciava os horrores da guerra e o uso de escravizados. Poucas vozes dissonantes circularam, e com dificuldades.
A imprensa paraguaia funcionava como propaganda sob censura e era fortemente controlada por Solano López:
- Jornais como El Semanario e La Regeneración atuavam como instrumentos oficiais;
- Críticas internas eram punidas com prisão ou morte;
A ocupação estrangeira destruiu arquivos e tipografias, dificultando o acesso à memória jornalística do povo.
Batalha de Tuiuti: 24 de maio de 1866
Foi a maior batalha campal já travada na América do Sul. Cerca de 60 mil homens se enfrentaram numa região alagada entre o Paraguai e a Argentina, em um campo conhecido como Tuiuti. O exército paraguaio, com cerca de 24 mil soldados, atacou as tropas da Tríplice Aliança, que somavam cerca de 35 mil.
A batalha começou por volta das 10h e se estendeu até o fim da tarde. O barulho dos canhões podia ser ouvido a quilômetros. Foi uma carnificina: combate corpo a corpo, mortes por baioneta, facões, afogamento e queimaduras.
O saldo? Mais de 9 mil mortos em poucas horas. A maior parte deles, soldados paraguaios. Foi uma vitória da Aliança, mas também o fim da capacidade ofensiva do Paraguai.
Por que Solano López atacou?
Este é um ponto de divergência entre historiadores. Alguns dizem que foi desespero; outros, orgulho. Ele queria romper o cerco, virar o jogo, mostrar que o Paraguai ainda podia vencer. Apostou tudo em Tuiuti — e perdeu.
A partir dali, o Paraguai entrou em colapso militar. A guerra continuaria por mais quatro anos, mas não havia mais exército profissional. Crianças e idosos seriam recrutados. O que era guerra virou massacre.
Outras batalhas que sangraram o mapa
- Batalha do Riachuelo (1865): batalha naval vencida pelo Brasil. Impediu o domínio paraguaio sobre os rios da Bacia do Prata.
- Curupaiti (1866): vitória paraguaia. A Tríplice Aliança sofreu mais de 5 mil baixas. Um dos maiores vexames brasileiros.
- Humaitá (1867–1868): tomada de uma fortaleza considerada impenetrável. Vitória simbólica para os aliados.
- Avaí (1868): nova vitória brasileira, mas com altíssimos custos humanos.
- Cerro Corá (1870): fim oficial da guerra. Solano López foi morto junto com seus últimos aliados.
O preço da vitória (e quem pagou a conta)
O Brasil venceu, mas às custas de:
- Milhares de camponeses, ex-escravizados e imigrantes mortos.
- Uma dívida externa enorme com a Inglaterra.
- Uma crise econômica interna que enfraqueceu o Império.
Dom Pedro II saiu da guerra como figura respeitada, mas distante. Muitos oficiais voltaram republicanos, indignados com o abandono e a miséria. Treze anos depois, o mesmo exército daria fim à monarquia.
E o Paraguai? Reconstrução com sangue e silêncio
O país perdeu até 70% da população masculina. Ficou ocupado por tropas estrangeiras. As mulheres reconstruíram a nação como podiam. O trauma virou memória nacional. Solano López, antes criticado, virou herói.
Quem foi o Duque de Caxias?
Luís Alves de Lima e Silva (1803–1880), nobre fluminense, foi militar de carreira desde jovem. Era de família tradicional e rapidamente subiu na hierarquia, principalmente por lealdade à Coroa e por sua eficiência em “resolver” conflitos internos.
Foi condecorado com o título de Duque de Caxias por Dom Pedro II, tornando-se o único brasileiro a receber esse título ainda em vida.
Por que ele é exaltado?
- Comandou a pacificação de revoltas internas, como a Balaiada, Sabinada e a Revolução Farroupilha;
- Foi o grande estrategista brasileiro na reta final da Guerra do Paraguai, organizando a ofensiva que levou à queda de Humaitá e Avaí;
- Tornou-se símbolo de ordem, hierarquia e disciplina, tudo o que o Exército passou a valorizar no pós-guerra;
- É hoje o patrono do Exército Brasileiro, celebrado no dia 25 de agosto.
E por que ele é polêmico?
1. Porque pacificou revoltas matando brasileiros pobres
As revoltas internas que ele ajudou a “pacificar” eram, na verdade, revoltas populares contra injustiças sociais e políticas, como:
- O uso forçado de camponeses nas forças armadas;
- A opressão de escravizados e pobres;
- A centralização imperial que ignorava as províncias.
Caxias reprimia com força, deixando rastro de mortes entre brasileiros que só queriam sobreviver com dignidade.
2. Porque lutou pela manutenção da ordem escravocrata
Caxias era monarquista convicto e defensor da ordem imperial, o que incluía proteger os interesses dos grandes fazendeiros escravistas.
Ele nunca foi abertamente contra a escravidão — pelo contrário, lutou para manter a ordem que a sustentava.
3. Porque virou símbolo de um Exército que depois se voltou contra o povo
Após a guerra, o Exército ganhou força e passou a se ver como guardião da moral da nação. Caxias virou o herói perfeito para endossar essa narrativa. Mas o problema é que ele nunca representou o povo, e sim a elite imperial.
Sua memória foi moldada para sustentar regimes autoritários, até mesmo durante a Ditadura Militar (1964–1985), quando o Exército se inspirava em sua imagem.
Quando uma rua leva nome de batalha, mas não de luto
Hoje, a data 24 de maio está em placas de rua, mas raramente em nossa memória. Poucos lembram de Tuiuti. Poucos sabem do que se tratou. Menos ainda entendem que o Brasil entrou em guerra não porque precisava — mas porque quis mostrar que podia.
Fontes para estudo e aprofundamento:
CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
DORATIOTO, Francisco. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EdUSP, 2016.
GONÇALVES, Marco Aurélio. A Guerra do Paraguai: interesses econômicos e manipulação ideológica. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 421, 2010. Disponível em: https://www.ihgb.org.br/. Acesso em: 25 maio 2025.
MILANESI, Luiz Carlos. Guerra do Paraguai: interpretações historiográficas. Revista Urutágua, n. 5, 2004. Disponível em: http://www.urutagua.uem.br/005/06his_milanesi.htm. Acesso em: 25 maio 2025.
SCHNEIDER, Ronald M. Brazil: foreign policy of a future world power. Boulder: Westview Press, 1976.
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