Arquivo Malacubaca Especial de Natal | Recepção/Isso aqui é um especial de Natal? (2013)

Parte 4: Recepção/Isso aqui é um especial de Natal? 

Música: uma trilha instrumental natalina, desde que não seja depressiva.


Alternando com a mensagem do narrador, imagens de belos natais em cidades do hemisfério norte e o funcionamento da Malacubaca, a movimentação da redação, dos funcionários…


Narrador: Natal… Você espera por ele o ano inteiro, desenterra as mesmas músicas de sempre e relembra as trapalhadas que aconteceram no ano passado, mas que você jura de pés juntos não haver de se repetir no próximo ano. E começa a movimentação. Um parente liga ao outro, esquece as rusgas, todo mundo na paz e no amor. Você sabe, não terá como fugir. O dia já é noite. Ressaltando, a noite mais importante do ano. A noite em que as emissoras ficam às moscas, em que aqueles especiais (chatos) vão ao ar, exceto os nossos, claro. Os funcionários da casa mostram serviço até na noite de Natal e tudo para você, telespectador, nunca fique desamparado. Ah, claro, valendo hora extra, até fazem um flashmob temático. Se no nosso Natal não tem flocos de neve nem um clássico do Sinatra, tudo bem! Nós nos viramos com o que temos, ora bolas. Mas nossos profissionais também merecem uma colher de chá e vão comemorar a noite mais linda do ano como você aí do outro lado…



Narrador:  Se você recebeu o convite… Opa, não sobrou grana pra imprimir convites? Aaaah… Vocês receberam o convite pelo Facebook, né? Aaah, então está esclarecido o enigma… Peraê… Eu não recebi nenhum convite… Que é isso? Eu, a voz mais marcante dos especiais da Malacubaca, fiquei de fora? Como esse humilde narrador com a voz mais bonita do país não recebe hora extra pelos serviços prestados? Eu poderia estar fazendo a piadinha do pavê, mas estou aqui atrás dessa cabine escondendo todos os meus dotes. Sim, sim, diretora, irei me conter… (pigarreou) Isso aqui é um Especial de Natal?




A quem interessar possa, Luís Carlos morreu, mas passa bem.

William Bastos Marques acabara de acordar. Levantou-se da cama vestindo somente a ceroula temática, abriu as cortinas e espreguiçou-se:

— Essa minha insônia precisa ser estudada! Mal amanheceu e esse calorão está com tudo!

William voltou a se deitar na cama e ligou o celular:

— Já que estou de férias, posso fazer meus próprios horários, só não posso esquecer de buscar a Tia Gladys na rodoviária. Acho que dá para tirar mais uma soneca e programar o despertador para umas quatro da tarde. 

Ao olhar as horas na tela do celular, no entanto, o âncora e editor-chefe do Vinte Horas literalmente caiu da cama.



Recuperado do tombo (repetido três vezes), William voltou a olhar a tela do celular para confirmar que dia era. Droga, era 24 de dezembro, já passavam das oito horas. 

O ônibus de Tia Gladys estava previsto para desembarcar na rodoviária de Balneário dos Anjos no mais tardar às 17h. Lamentar o tempo perdido não era uma opção…

Música: Oh yeah — Yello. (essa é um clássico e quem assistiu Curtindo a vida adoidado sabe bem do que estou falando).

— Caramba! Quantas horas eu dormi? — William perguntou a si enquanto corria para o banheiro. — Sou cético, mas nunca é bom arriscar. Praga de diva é um negócio que pega, imagina essa diva sendo a Noviça, prefiro não me arriscar.

Narrador: Convenhamos, a pobrezinha sacrificou o dia para preparar a ceia, relembrou o doloroso noivado com o dançarino da Madonna que era a imagem e semelhança do Meirelles e contava nos dedos para começar a troca de presentes. Ainda dá tempo, William. Com força na peruca, você consegue! #ForçaWill

Se você nunca saiu de casa às pressas com aquela sensação de ter esquecido algo importante, não está só. Com William, o ditado se aplicava em gênero, número e grau. Ele estava saindo de casa vestindo camisa social debaixo do o paletó marrom e a ceroula, calçando sapatos marrons, cabelo molhado, perfumado.

— Essa não! — lamentou William, com as mãos no topo da cabeça. — Agora é tarde, só torcer para não piorar.

Sim, podia piorar. Ele entrou no velho Fusca 72 de Bilu e tentou dar a partida, mas o possante nem tchum.

— Agora não, rapaz. Enguiça pra virada, mas hoje não! — Ele apoiou as mãos no volante e abaixou a cabeça, ativando a barulhenta buzina: — Hoje não…


******


O fluxo de passageiros na rodoviária da cidade quebrava recordes, mas também incluía alguns presentes de grego no pacote: congestionamento nas rodovias, ônibus atrasados, passageiros estressados descontando a fúria em quem não merecia e, claro, os que faziam do limão uma limonada, a exemplo de Gladys, tia paterna de William.

Ela e mais cinco idosos improvisaram uma mesa para jogar cartas e ao entorno algumas pessoas assistiam empolgadas, considerando que as opções de entretenimento na área de embarques e desembarques eram escassas e o calor, infernal.

Na verdade, Gladys seria o próprio William de peruca branca na cabeça, óculos fundo de garrafa, vestido azul com estampas florais e enchimento no busto, tamanco barulhento de madeira, quase uma irmã perdida da vovó da Família Buscapé.

Ao fim de mais uma partida, Gladys fez uma pausa para beber água e verificar no celular se William ao menos recebeu as mensagens que lhe foram enviadas.

— Eita, William desajeitado! Esse nasceu dormindo e ainda não acordaram…


******





Uma das vantagens de ser dono do próprio nariz, sem dúvida, é poder tomar banho demorado, fazer da embalagem do xampu um microfone improvisado, sem ninguém bater à porta para reclamar ou pedindo para usar; a desvantagem chega com a fatura e não há saída, você precisa quitar a conta se não quiser tomar banho gelado.

O sapo não lava o pé
O sapo não lava o pé
Porque não quer…


Eduardo Meirelles, despreocupado, cantarolava debaixo do chuveiro.


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William, embarcado em um táxi, ligava para o celular do amigo, que tocava até o final e não atendia.

— Nem pense em me abandonar, Meirelles! Atende aí!

O taxista virou a cabeça para trás:

— Não é armação?
— Pois não, senhor?
— Não quero ser mal-educado, mas sempre achei que os especiais da Malacubaca eram armados, se é que me entende…
— Não mesmo, senhor. Se fossem, seriam melhores.
— Então tem mesmo uma equipe da Malacubaca aqui?

William engoliu em seco.

— Se há uma equipe a tiracolo, por que ninguém foi buscar a sua tia na rodoviária, sabendo dos seus perrengues?





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Gladys reparou num detalhe: mais cedo um repórter da Malacubaca gravou uma participação ao vivo nos noticiários da casa e produziu uma reportagem sobre a movimentação típica das festas de fim de ano, no entanto, três homens de camiseta preta não saíam da ala onde ela esperava William enviar um pombo-correio.

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Outra vantagem maravilhosa de morar sozinho é deixar o chão do banheiro molhado ao sair do banho para atender o celular, a desvantagem é se escorregar, bater a poupança no piso e não ter ninguém para culpar. De qualquer forma, aquela seria uma boa desculpa para fugir do amigo oculto… ou não.

— Mamar na teta esse folgado não quer! — reclamou Edu para William do outro lado da linha.
— Eu já quebrei vários galhos para você! — falou William.
— Tá… — bufou Edu. — O que você não pede sorrindo que eu não faço chorando?
— Prometo que vou tentar convencer a chefa a te dar uma folguinha no ano-novo.
— Se for assim, sim! — concordou Edu.

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Animado, o jornalista alocou as caixas de presentes no porta-malas, as bolsas térmicas onde estavam as sobremesas encomendadas na padaria e deixou um espaço vazio para alocar a bagagem de Gladys. Antes de fechar o porta-malas, checou se não esquecera nada na pressa, mas tudo parecia estar no devido lugar. Entrou no carro, vestiu o cinto de segurança e quebrou a quarta parede:

— Quem não tem uma história de Natal para contar não pode dizer que viveu? Em algum ano ou você ganhou um presente de que não gostou ou comeu algo na ceia que te deu aquela dor de barriga ou aturou alguma visita indesejável que vem de mala e cuia… — Ele deu a partida: — Não importa! Alguma coisa já te aconteceu, as estatísticas nunca mentem. 69% das pessoas odeiam o amigo oculto. Vai dizer que você gosta? Você gasta uma nota para dar um presente legal e sempre é surpreendido… negativamente. Sou mais o ano-novo, mas não existe ano-novo sem Natal. Pior, não vai ficar, não vai ficar… 

O carro parou no primeiro sinaleiro (semáforo/farol): 

— Festa em família também tem seu lado bom: a rabanada, aquela torta de nozes que te faz até repetir… Rever aquele seu tio mala sem alça que, quando bebe, dança Macarena e quase derruba o pinheirinho de Natal, quem nunca? Para fechar com chave de ouro, a melhor de todas as certezas: se você traz comida, não precisa lavar a louça. Quem cozinha não lava, pô!
 
O sinal abriu e Edu encontrou o amigo em frente à Malacubaca, manobrando o carro para o amigo entrar.

— Ô Meirelles, depois dessa, nem sei como te agradecer. Salvou meu Natal!
— Você devia se desfazer daquela lata velha, cara. Mais vive no conserto do que contigo. — opinou Edu.
— Dirigindo aquele carro eu me sinto próximo da Bilu.
— Deixa de drama. A essa hora, a Bilu está no SUV do novo namorado e você aí, chorando pitanga. Se você seguisse o meu exemplo…
— Pensar que este será o segundo Natal sem ela.
— Quem mandou vender a casa para viajar para o Japão e não a consultar antes?
— Foi o jogo da minha vida, mermão. Ou eu perdia esse jogo e me arrependeria pelo resto da vida ou eu arriscaria tudo e viveria para contar essa façanha para os meus netos.
— Você fez sua escolha. Toda escolha tem uma renúncia.

******

Alguns minutos depois, Meirelles e William procuravam Tia Gladys no interior da rodoviária. Ela os reconheceu de prontidão e acenou alegremente para eles.

— Aqui, meninos! Aqui!

Gladys abraçou William bem apertado:

— Eu bem que deveria te dar uns safanões retroativos por aprontar uma dessas com a Bilu. Isso lá é coisa que se faça?
— Calma, tia. Posso me explicar!
— Com razão ela te deu um passa fora.
— Ela teria feito o mesmo se fosse a vez do Flamengo — argumentou William.
— E se o time tivesse perdido, o que você faria?

Nem sequer ocorreu aquele pensamento em William. A vitória do Corinthians estava escrita nas estrelas, no entanto, a reação de Bilu foi tonitruante e veio a público, apesar do grande esforço para abafar o escândalo.

— Edu Meirelles!
— Não, é um sósia dele! — debochou William.
— Sai pra lá, Belo Adormecido!

Gladys deu alguns passos adiante para observar Meirelles mais de perto.

— Além de bonito e charmoso, ainda por cima é um cavalheiro em extinção — suspirou Gladys.
— Quem vê cara não vê coração — continuou William.
— Pela cara de sono, deve ter bebido todas ontem à noite — acusou Gladys.

Não exatamente. Desde que Bilu o expulsou de casa, William vinha dormindo muito, em partes para não lidar com os sentimentos conflitantes que assaltavam a mente dele. Por um lado, compreendia a posição da amada; por outro, viveu uma experiência inesquecível e amargou as consequências da impulsividade.

— É o Edu Meirelles?
— É meu amigo, tia. É mala sem alça, mas é meu amigo. — Ingratidão mata, Will. Se não fosse por mim, você seria praguejado pela diva. — Voltou-se para Gladys: — Está muito cansada, dona Gladys? Deixe que eu leve sua bagagem, por favor.

Edu Meirelles não contava que Tia Gladys traria uma bagagem tão pesada e William nem sequer moveu um músculo para ajudar o amigo.


— Felizmente faço ioga e lido bem com longas viagens, mas esse William é um desnaturado…

Edu guardou a bagagem de Gladys no porta-malas e encaminhou-a até que se sentasse e vestisse o cinto de segurança.

— Você está bem?
— Melhor agora — respondeu a tia de William. — Sabe quantas horas fiquei na rodoviária? Três horas. Por sorte, fiz amizade com uns passageiros muito legais porque os ônibus deles atrasaram, jogamos cartas, conversa fora, mas seria uma lástima passar a noite de Natal esquecida na rodoviária.
— Sacanagem, Will. Que sacanagem, cara. Deixar sua tia plantada na rodoviária por mais de três horas…
— Perdi a hora.
— Perdeu a hora desde que nasceu.
— Que é isso, tia? O carango está super bom, mas hoje teimou em não funcionar…
— Que nem essa sua cabeça de pudim… — Ela olhou a movimentação das ruas pela janela do carro: — Falta muito para a gente chegar?
— Um pouco. — murmurou Edu.
— Quanto?
— Algum tempo!
— Que desânimo é esse, rapagão? Até parece que está indo para a guerra!
— Edu Meirelles é o nosso Grinch tupiniquim.
— Não é bem assim… — protestou Edu.
— É, sim! No Carnaval, vem com aquela história de faringite carnavalesca para não trabalhar nos dias de folia, depois tem a urticária amorosa lá no Dia dos Namorados e agora veio com essa história de ser alérgico ao pelo das renas do bom velhinho.
— Você é o quê, rapagão? Alérgico a pelos de rena?
— Você não sabia dessa? — dissimulou Edu.
— Você é o campeão mundial de inventar desculpas esfarrapadas, Eduardo Meirelles. Eu sabia que você era descarado, mas não tanto assim — refletiu William, deixando escapar uma risada.
— Falta muito para a gente chegar? — indagou Gladys, entediada.
— Falta!
— Minhas lombrigas de estimação estão aqui protestando — pressionou Gladys. — Quero comer logo!
— Ih, tia! Vá se preparando porque a chefa não libera o jantar antes da meia-noite.
— Já aviso de antemão que as asinhas são minhas!
— Não por nada, dona Gladys, mas eu, se fosse a senhora, guardava um espacinho para as sobremesas. Sem querer me gabar, mas neste ano eu caprichei.
— Você fez sobremesas? — William arregalou os olhos.
— Com categoria. Deu um pouquinho de trabalho, mas valeu a pena.
— Estou pagando para ver!
— E verá!
— Prevejo que passarei o dia 25 no banheiro — concluiu William, desanimado.
— Essa foi tão engraçada que eu até me esqueci de rir — retrucou o fanfarrão.
— Vou aproveitar para terminar de reler Grande Sertão Veredas.
— E nós não vamos chegar nunca?
Edu Meirelles, para não se irritar, ligou o rádio. Tocava o final de Last Christmas, do Wham, porém, a canção seguinte começou.

— Então é Natal
O que você fez

Sentindo calafrios, Eduardo tratou de mudar de estação, onde tocava algum pagode aleatório.

— Por que mudou? — bronqueou Gladys. — Eu amo aquela música.
— Essa música já saturou faz tempo — argumentou Edu.
— Não pretende agradar sua ilustre convidada?

Resignado, Edu sintonizou de novo na referida estação de rádio e bufou, pedindo aos céus para resistir àquela noite. Segundo a superstição dele, os infortúnios estavam somente no princípio.


******

Música: Hey santa — The Wilson Sisters.

O crepúsculo tingia o céu de tons alaranjados e as primeiras estrelas prenunciavam uma noite longa e inesquecível. Tal qual no ano passado, o calor era intenso. 

Após semanas de intensa dedicação, Noviça sentia uma onda de ansiedade percorrer o corpo, ser anfitriã não era uma responsabilidade simples de encarar. Tomava um longo banho de banheira na tentativa de relaxar o músculo, embora os pensamentos intrusivos a encurralassem.

Lilly e Luís Carlos chegaram juntos, caminhando pela calçada iluminada. Já ajudaram Noviça com os preparativos, mas voltaram para casa para se arrumar. Eles agora desfilavam pelo caminho de pedras com elegância.

Lilly, deslumbrante em seu vestido de gala prateado, brilhava sob a luz das lâmpadas decorativas. Seu coque frouxo deixava algumas mechas soltas ao redor do rosto, complementando sua beleza natural. Ela segurava uma clutch prateada em uma mão e equilibrava-se com graça em sandálias de tiras finas.

Ao seu lado, Luís Carlos ostentava um visual vintage, com bastante gel no cabelo para criar um topete repartido ao meio. Vestia um paletó verde-musgo, uma calça boca-de-sino bordô e uma camisa rosa de cetim. Sua presença chamava a atenção, destacando-se pelo estilo ousado e retrô.

Noviça os recebeu no portão, ao lado de Jaqueline. Usava um vestido vermelho estilo sereia adornado com pedrinhas, e havia prendido os cabelos em um coque sofisticado devido ao calor da noite.

— Meus parabéns, vocês capricharam! — impressionou-se Noviça.
— Já chegou alguém? — perguntou Luís Carlos.
— Até agora? Não. — respondeu Jaqueline.

Lilly e Luís Carlos sorriram agradecidos e trocaram abraços com Noviça. Eles foram conduzidos para dentro da casa, onde as luzes e os enfeites natalinos criavam uma atmosfera mágica. O cheiro delicioso da ceia começava a se espalhar, prometendo uma noite inesquecível.

******

Uma hora depois

— Já são mais de dez e meia da noite e nada do Meirelles chegar — Noviça, tristonha, olhava as horas pelo visor do celular.
— Eu disse que ele não vinha, mãe.
— Ele tem que vir. Ele prometeu.
— Prometer, qualquer um promete. Veja só pelos políticos. Prometem céus e terra nas campanhas eleitorais, mas não prometem que vão cumprir.
— Meirelles não vai me desapontar, não vai me desapontar…
— Se ele não chegar até 23h30, a gente vai cear sem ele, mãe. Já aviso!
— Ele virá… Sei que sim!
— Sinceramente, torço para que sim. Já considero uma chatice ter de esperar até a meia-noite para comer e mais ainda esperar a Cinderela fanfarrona chegar!
— Minha casa, minhas regras. Quando você tiver sua casa…
— Eu já tenho minha casa, aliás! Entro às 6h no plantão, não vou dormir nada.
— Só não entendo por que você não vai comer peru.
— Porque eu não me sinto bem mastigando a carne de um semelhante meu.

Noviça inclinou a cabeça para trás, sem esconder a gargalhada:

— Semelhante seu? E o que tem você a ver com um peru?
— Eu não como os meus amigos. Aliás, por que eu comeria meu próprio filho?
— Que história é essa de filho?
— O Filipo é meu filho.
— Seu o quê?
— Filipo é meu filhinho adotivo.
— Porco por porco nós já temos um.


Noviça apontou para Luís Carlos indo se sentar na poltrona após apanhar sem modos um punhado de amendoim da mesa de antepastos na sala de jantar.

— Dar-me um neto de verdade, não dá, mas chega na minha cara e tem a pachorra de dizer que “adotou” um porco. Eu, vó de porco?
— O Filipo é um querido, você vai amá-lo, mãe. — Jaqueline sacou o celular do bolso e procurou uma foto de Filipo para mostrar à mãe: — Ele é o Filipo.
— Ele vai ficar assim?
— Não, ele vai crescer bastante.
— Daqui a pouco chega aqui com uma vaca e diz que é outra filha — ironizou Noviça, que chorou rios de lágrimas ao vivo quando Tobias, o gato da família, morreu de velhice.
— Ô Lilly, venha ver uma foto do Luís Carlos recém-nascido! — gesticulou Noviça.
— Se vocês soubessem o quanto um porco merece ser amado, teriam vergonha de se empanturrar de bacon e derivados.
— Sem essa, natureba! — debochou Lilly.
— Sem essa você, que só prevê o que já aconteceu e não acerta nem bolinha de papel no cesto de lixo!
— O Luís Carlos era muito parecido com aquele porco do filme lá, o Babe — Noviça ria olhando as fotos do porquinho de Jaqueline no celular.
— E aí, Jacky? Já encontrou fotos do Garibaldo no berçário? — devolveu Luís Carlos.
— Ô, Noviça! Eu, se fosse você, não deixava!
— O que vem de baixo não me atinge! — declarou a diva.
— Experimente sentar num formigueiro para ver só — achincalhou o irmão de Lilly.
— Mais cuidado com esses farelos porque passei aspirador — ralhou Jaqueline.
— Vê essa, Lilly? Jaqueline me vem com ideia de jerico, pensando decerto que minha casa virou zoológico. Só falta daqui a pouco ela parar de tomar banho porque um dia faltará água no mundo.
— Isso é sério, mãe.
— Mas é claro! Não vi graça nenhuma.
— A questão é que eu não quero comer carne. Eu, Jaqueline Esteves, não quero mais consumir carne animal, mas não estou condenando quem o faz, tampouco proibindo ninguém de comer. Posso celebrar o Natal de outro jeito, sem sentir um nó na garganta pensando no que esse peru passou até chegar à nossa mesa.
— Hoje não é dia para sentimentalismo barato, Jaqueline. É Natal!

Jaqueline, dramática, voltou-se para a câmera.

— Por que, Deus? Por que fui nascer de uma mãe completamente insensível?

Jaqueline, amuada, saiu para tomar um ar e reconheceu o carro de Edu Meirelles estacionado a alguns metros da propriedade. Ela até esfregou os olhos para ter certeza de não estar dormindo nem alucinada.

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