O Mary Recomenda de hoje pode não ser adequado a todos os públicos, mas trata a literatura com a seriedade que ela merece. A obra desta semana não esconde, nem no título, a que veio.
Se a pauta de relacionamento abusivo com uma pessoa narcisista e manipuladora é um gatilho real para você — a ponto de evocar lembranças que possam te fazer mal — há outras edições desta coluna para você se deleitar. Cuide da sua saúde mental e priorize o seu bem-estar.
Azar do amor: ou como eu sobrevivi a um manipulador, HQ da autora francesa Sophie Lambda, nos apresenta uma história real que seria pessoal se não fosse tão universal. Publicada na França em 2019 e traduzida para o português em 2024 pela editora Buzz, a obra retrata, com sensibilidade e lucidez, o que tantas mulheres já viveram.
Se nós, mulheres, nos sentarmos para tomar um café e compartilharmos nossas experiências dessa natureza, encontraremos muitos pontos em comum — como se apenas mudassem os nomes, o cenário e alguns detalhes factuais.
Para quem nunca passou por algo parecido, a leitura é valiosa: talvez ajude a reconhecer sinais em relacionamentos de pessoas próximas.
Para quem já viveu essa montanha-russa emocional, onde a náusea é a única certeza, avançar na leitura pode ser doloroso. Quando estamos inseridas num contexto abusivo, perdemos a capacidade de enxergar a realidade. Passamos a duvidar das nossas certezas e a nos ver com as mesmas lentes do abusador.
Ora, ele não é tão carismático, tão simpático?
Será que ele fez isso mesmo?
Você não está exagerando?
Ele é só… muito apaixonado por você, não percebe?
A cada surto, a cada ofensa, a cada discussão, nossa essência se murcha como uma flor esquecida em um vaso qualquer. Vemos nossa confiança escorrer pelos dedos e nos damos conta de que estamos isoladas, apavoradas, tentando recuperar momentos que nunca existiram. Esperamos que aquela versão do começo volte — mas ela jamais volta, porque nunca foi real. Ele apenas atuou até conseguir o que queria e se enjoar.
Essa é a tática: culpar a outra parte pela maldade que ele próprio comete.
Nem todas as mulheres conseguem sair vivas de um relacionamento abusivo. As que conseguem, levam tempo para se desintoxicar das palavras cruéis e das feridas invisíveis. A culpa nos castiga: “eu devia ter feito diferente”. Mas será que poderíamos mesmo?
Esse livro me fez pensar o quanto é difícil perceber os sinais. Hoje, chamamos de lovebombing aquela fase inicial de atenção exagerada, declarações intensas e promessas grandiosas — confundimos paixão com amor, carência com destino. Mas culpa não é o caminho.
Culpa é justamente o fardo que as vítimas mais carregam.
E entre tantos momentos de dor, há também espaço para ternura. O urso Chocolate, personagem que acompanha Sophie ao longo da narrativa, chama a atenção por suas inserções diretas e cheias de afeto. Ele funciona quase como uma consciência protetora, que quebra o peso do enredo com humor, sensatez e acolhimento.
Se a autora não pôde evitar o sofrimento, ela o transformou em arte — e nisso reside o poder mais bonito da criação.
O que nós, mulheres, queremos de verdade é simples: amor, carinho, respeito. Não erramos por confiar — erra quem mente, manipula e distorce a realidade.
O fim não é exatamente o fim
A HQ também introduz um conceito importante chamado “hoovering”, termo que vem do verbo to hoover (aspirar), em referência ao ato de um abusador tentar “sugar” de volta a vítima para dentro do ciclo de manipulação.
Essas tentativas podem vir disfarçadas de arrependimento, mensagens carinhosas, pedidos de ajuda ou situações inventadas para gerar culpa e forçar contato.
O objetivo é sempre o mesmo: mexer com o emocional da vítima para que ela reaja — mesmo que seja com raiva ou piedade. O narcisista não suporta ser ignorado, precisa de qualquer forma de atenção para reafirmar o próprio ego.
Esse padrão de comportamento é o que faz com que tantas vítimas duvidem da própria percepção e se sintam “presas” mesmo depois do rompimento. E o livro da Sophie mostra isso com uma clareza quase pedagógica — cada mensagem, cada súplica, cada “eu mudei” é uma tentativa de sugar de volta aquilo que ela conquistou com tanto esforço: a liberdade.
Sobrevivemos, apesar de tudo
Embora minha reflexão até aqui se concentre nas vivências de mulheres cisgênero e heterossexuais — as que mais costumam relatar casos como o da autora — é importante lembrar que o abuso psicológico não escolhe gênero, nem orientação sexual.
Manipuladores podem ser homens, mulheres ou pessoas não binárias; podem estar em relações românticas, familiares, de amizade, trabalho ou até em parcerias criativas. O padrão de conduta é o mesmo: controle, distorção da realidade, chantagem emocional, isolamento e culpa.
Por isso, ler Azar do Amor não é apenas revisitar um trauma — é também compreender os mecanismos da manipulação, identificar sinais precoces e, principalmente, recuperar o poder sobre a própria narrativa.
Sophie Lambda nos lembra que escrever (ou desenhar) pode ser um ato de libertação, e que transformar dor em arte é uma forma de sobrevivência.

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