O que diz um beijo no olho?


"Os cílios dedilhados aceitam a aproximação dos lábios inspirados. Os olhinhos estão fechados, mas as sinestesias estão mais intensas do que nunca. A revolução se dá na direção certa: atingir o coração de quem se ama." 
— Mary  🪻

Não se beija uma pessoa aleatória nos olhos, ela refletiu enquanto pesquisava o significado daquele gesto pouco usual numa noite de sábado. Tratava-se do primeiro beijo dela em muitos anos, que despertou desejos, curiosidades, sonhos adormecidos.

Ela entendia sem grande esforço que um beijo dispensa a necessidade de palavras para expressar um sentimento, uma ação, uma vontade. Quem beija os olhos, pede permissão para entrar no coração de alguém, manifesta o desejo por um pouco mais de intensidade, intimidade, ao mesmo tempo em que não encontra as palavras certas para declarar o transbordar de um amor que vai crescendo quietinho até ser impossível silenciar.

Era de uma ternura contrária à tendência do “pegar sem se apegar”. Inclusive, o verbo “pegar” soava inapropriado, melhor empregado nas músicas de qualidade duvidosa que faziam sucesso. Ela não entendia o porquê de batidas irritantes e letras vazias recebiam mais espaço do que a poesia, a reflexão e o próprio amor, não aquele amor chulo, esdrúxulo, que cabe num coito e acaba.

Recebera um beijo no olho do cara que destruiu os sonhos dela ao despertar um sentimento o qual nunca quis corresponder. O estremecimento era inevitável, havia a possibilidade de a história repetir-se como farsa, como fosse, ao passo que já se mostrava tarde demais para fazer da indiferença um escudo. Estava apaixonada.

O autor do último beijo borboleta era um homem experiente, maduro, ocupado demais para fazer joguinhos e brincar com sentimentos. Finalizar um ciclo com outra pessoa implicava viver um luto por um compromisso que foi bem-sucedido por um tempo, mas já não era o desejo de ambos, que, em comum acordo, decidiram ser pessoas melhores longe uma da outra. Uma medida justa.

Ele poderia ter outras amigas a quem também beijava nos olhos, não seria inteligente criar expectativas de ser única, especial e desejável. As sequelas do trauma permaneceram como lembrete para não se derreter por palavras doces e atitudes ambíguas, ler nas entrelinhas é uma virtude admirável quando empregada na literatura, na intenção de um texto qualquer, não se aplicava a assuntos do coração.

Não ficaremos juntos por culpa do destino. Na verdade, o acaso foi incriminado sem chance de defesa, aquele cara era imaturo e insensível demais para assumir os próprios erros. O amor que sinto por você é fraternal. Ela nunca se deitou com alguém que a enxergava como um irmão. Prolongar aquele contato dolorido reabriu feridas que nem haviam cicatrizado, só a confundia e humilhava mais. O desamor se fez desgosto e repulsa, ninguém a humilharia outra vez, jurou a si.

Precisava de concentração para escrever, no entanto, discorrer sobre coração partido não a motivava. Ela era uma mulher bela, inteligente, repleta de virtudes que qualquer outro homem almejava, porém, entender a mentalidade dos homens era tão desafiador quanto estudar a Teoria das Cordas, seria mais fácil até viajar para outros universos paralelos a decifrar o que aquele beijo significou para o amado, o verdadeiro, o que a encorajou a deixar o casulo. Caso se machucasse outra vez, não teria onde se refugiar.

🐞🐞🐞

Ela correspondeu ao beijo borboleta, porém ainda se mostrava um verdadeiro enigma para ele. O beijo terno e acalentador ansiava o toque dos lábios e a proximidade de corações, era questão de tempo.

A pressa seria um mau presságio, indicativo de diversão sem propósito. Não era homem de pular de cama em cama, colecionar conquistas de uma noite só para se engrandecer na mesa do bar. Apreciava boas conversas, trocas de olhares, construções sólidas e pautadas no respeito mútuo, julgava mais sábio amar off-line, não se deslumbrava em criar um faz-de-conta virtual para lotar o perfil de indiretas e exacerbar afetos de conveniência. 

Ninguém contava que, apesar da boa desenvoltura para lidar com pessoas, ele costumava ser um pouco travado no que se referia a expor sentimentos. Temia ser mal interpretado se porventura demonstrasse por ela algo além da amizade, mas as circunstâncias só indicavam que já não podia mais fugir da verdade. 

Ela viveu uma situação de abuso sexual, era perfeitamente normal que se mantivesse reativa e insegura, carregando uma culpa que não era dela e sim do crápula arrasador de corações e zero noção de consentimento. Se não desejava ser insistente ao ponto de repeli-la, também não podia se ausentar e suscitar os gatilhos que a atirariam em uma forte crise. Parecia não haver saída.

Aquele beijo era o modo de dizer que era possível voltar a acreditar no amor após uma desilusão profunda, porque ele próprio também remendava as partes quebradas do coração dele, queria mantê-la segura e protegida para sempre, se assim pudesse ser.

O beijo, a propósito, dizia muito mais do que ambos conseguiriam compreender. O encontro de corpos, num momento vindouro, seria consequência da junção de almas companheiras, que andaram perdidas até, por fim, se encontrarem numa simples troca de olhares.

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