O espaço era aquele. Amigos em comum, colóquios diversos, educados cumprimentos, sorrisos singelos, desprovidos de segundas ou mais intenções, o tal do gostar “de graça” de outra pessoa.
A alternância nos papéis de debatedores e espectadores prevalecia acima de tudo; discordâncias eram inevitáveis, no entanto, todos ali buscavam exprimir seus pareceres sem diminuir a visão do mundo do outro ou exceder no tom, pontos importantes para que pudessem enriquecer os argumentos.
Vivendo em um mundo pautado pela intolerância, ter uma opinião diferente do restante fazia com que ela, em nome da paz e para manter certas pessoas na sua vida, não se posicionasse. Pisava em cacos de vidro no lugar de ovos. Entretanto, quanto mais voltou àquele lugar, mais sentiu que era bem-vinda, o desconforto da bolha não mais a representava. Eles a haviam compreendido. Todos almejam pertencer a algum canto no mundo, faz parte da experiência de viver, socializar, todavia, estava longe de ser uma troca justa se o critério de permanência significava prescindir da essência.
Ser agradável para suprir as injustas expectativas alheias havia deixado de ser prioridade na vida dela. Quando o coração apertava por conta da solidão e os pensamentos intrusivos cercavam-na para frear os pequenos grandes progressos, um acanhado sorriso abria-se. Por mais que recaísse, não se entregava mais ao vitimismo e ao sofrimento; com a compreensão de que a luta nunca teria fim e sempre haveria de encontrar motivos para agradecer.
Ele conduzia a situação de modo tão natural, também apreciava ser ouvinte e não aquela figura pedante que interrompe os outros para vencer a discussão na base do grito. Amigos podiam ter pontos de vista distintos, sem perder a admiração e a afeição. Ganhar a discussão baseava-se em defender ideias, ouvir contra argumentações e fazer observações, sem perder a compostura e descambar para a baixaria.
Foi em um dia no qual ele não apareceu que ela foi tomada por uma tristeza profunda, havia-se deixado cativar. Manteve-se mais na condição de ouvinte, havia uma figura desejando aparecer mais do que as próprias opiniões. Não era prudente nem decoroso comparar pessoas, na verdade, não pretendia emitir nenhum julgamento precipitado, contudo, ele era único, e se aqueles momentos eram agradáveis, sim, o saber vinha em primeiro lugar e também não deixava de ser uma oportunidade para estarem juntos, ainda que a timidez fosse um grande obstáculo.
Alguns dias passaram-se e quem precisou ausentar-se foi ela. Gostaria de amar as pessoas sem o peso do apego, da dependência, do medo de ser indispensável. Sabia que, com ou sem ele, era feliz e desejava continuar sendo. Aprisionar-se às expectativas seria um retrocesso sem precedentes. Além disso, as chances de ele ser comprometido eram reais e estava fora de cogitação sofrer à toa.
Ele, por sua vez, notou a ausência dela. Ninguém sabia dizer o que ocorrera. Se ela retornasse, tomaria a iniciativa de convidá-la para um café. Dessa forma teria um ensejo para passarem algum tempo juntos. E assim se fez.
— Oi! — cumprimentou ele quando os outros já se dispersavam para ir embora.
— Oi! — ela respondeu.
— E aí? Tudo bem?
— Tudo bem comigo. E com você?
— Tudo ótimo comigo. — sorriu ele. — Ei, me conta por que você não tem aparecido ultimamente. Sabe… você fez falta…
Ela corou e o sorriso tímido o encantou.
— Você tem algum compromisso amanhã? — quis saber ele.
— Não, nada de tão importante…
— Você aceitaria tomar café comigo?
— Claro que eu aceitaria, por que não? Alguém mais vai estar?
— Não, eu só convidei você. A que horas podemos nos encontrar?
— Às 16h está bom para você?
— Está ótimo, sim.
No dia seguinte, no horário de antemão combinado, encontraram-se.
Ele havia confidenciado a uma amiga de longa data sobre aquela mulher de olhos grandes, enigmáticos e brilhantes que morava em seus pensamentos, no entanto, temia ser inconveniente e, com isso, constrangê-la. Muitos homens desconheciam ou ignoravam de propósito a linha tênue entre fazer-se notar e forçar uma situação.
Aquele encontro seria um divisor de águas, posto que, se ela lhe contasse ser comprometida, nada restava senão a amizade, caso fosse do interesse dela.
Ela não conseguiu dormir direito na noite passada. Ser notada por ele era uma daquelas surpresas gratas da vida. O último “encontro” custou-lhe uma ferida incurável na alma, um assunto que não pretendia compartilhar com ele ou quem fosse. Nunca foi a preferida dos garotos na escola e, quando cresceu, a situação não se modificou. Era aquela que ia ao cinema sozinha, comprava presentes para si mesma no Dia dos Namorados (aliás, que data desnecessária!), ocupando o tempo com leituras, estudos e a família, de certo modo conformada com o que chamava de destino.
O encantamento por ele não se deu à primeira vista. Reparava com discrição aquela postura ereta, firme, determinada, a concentração em ouvir, o fato de ser atencioso e gentil com todos e em muitas ocasiões ser a voz da razão no sentido denotativo. Olhar e enxergar além. A voz dele a confortava. Não se recordava precisamente em que instante passou a haver um motivo a mais para frequentar aquele lugar.
Eles abraçaram-se e sorriram um para o outro, adentrando a cafeteria de esquina. Escolheram uma mesa no canto direito, onde podiam ver a movimentação da rua pelas vidraças e ter mais liberdade para conversarem. O balcão ocupava um espaço considerável e lá estavam a variedade de bolos, tortas e outros doces, além dos salgados, folheados e sanduíches, naturais ou não.
— Boa tarde! — cumprimentou a atendente. — Já escolheram o que vão pedir?
Ele pediu um café expresso e um folheado, ela quis chocolate quente feito com chocolate belga e uma queijadinha. A atendente anotou tudo e perguntou qual seria a forma de pagamento.
— Eu pago! — prontificou-se ele.
— Eu pago a minha parte.
— Não precisa se preocupar com isso!
— É sério, eu fico muito sem jeito…
— Eu chamei você para sair e este café é por minha conta. Não precisa se acanhar, somos amigos.
A garçonete entregou-os a nota onde constava a senha daqueles pedidos e anunciou que traria as bandejas até a mesa onde estavam.
A música ambiente estava sintonizada em um volume aceitável e a seleção das faixas misturava elementos do jazz contemporâneo e outra mistura de ritmos. As luzes indiretas contribuíam para o ambiente externar personalidade e acolhimento.
— Eu não conhecia esse livro, mas me parece ser bem interessante! Vou procurá-lo!
— Eu não gostei do final, no entanto, a narrativa é muito fluida, embora breve, não é esquecível — argumentou ela. — Fez-me pensar a situação sob um viés que me afasta daquele lugar-comum. Gosto de livros que me ajudem a sair da casinha.
Ele procurou a mochila e apanhou um livro o qual deixou no tampo da mesa. Os olhos dela correram pela capa.
— Você… já leu? — ela indagou.
— Na verdade… se você não se ofender, comprei para te dar de presente.
— Ofender-me porque você me deu um livro?
Ele retesou os ombros, baixando um pouco mais a voz.
— Pode ser que o seu namorado não veja com bons olhos.
— Para esclarecer, namorado nenhum manda nas minhas amizades. Em segundo lugar, eu amo ganhar livros de presente; terceiro, estou atrás deste livro faz algum tempo e, por último, não estou namorando.
— Leia e me conte… — Ele pediu. Sentia vontade de acariciar os dedos dela, gostaria de uma brecha para entrelaçar seus dedos nos dedos dela, porém continha-se.
— Você não leu?
— Li e gostei bastante da forma como os quatro personagens representam a nós todos de modo geral. Embora você muitas vezes seja a raposinha, vejo você na toupeira.
— Obrigada…
— Você não precisa se escondeu de ninguém, raposinha. — E as mãos dele tocaram-se.
A garçonete chegou com as bandejas, apoiou-as no tampo da mesa, desejou bom apetite aos dois e retirou-se. Ela guardou o livro na mochila e preferiu esperar um pouco para beber o chocolate quente.
— Sempre mordo a língua — ela brincou.
O aparelho dele tocou e ele, um pouco desconcertado, levantou-se e pediu licença. Ela aproveitou para fotografar a refeição, não para publicar nos stories, não naquela ocasião, pura e simplesmente porque gostaria de escrever sobre aquela tarde com a maior riqueza de detalhes possível. Registrou algumas cenas da rua e uma em especial marcou-a: aquele São Bernardo atravessando na faixa de pedestres. Não era todo dia que se via uma cena como aquela.
— Desculpe-me… — disse ele ao retornar e dar uma olhadinha no vidro, surpreso com o tamanho daquele animal. — É um São Bernardo?
— É, sim. — Ela cortou um pedaço de queijadinha.
— Quando eu morava com os meus pais, nós tínhamos um cachorro bem grande que ficava solto e era muito protetor, praticamente me viu crescer. Morreu velhinho, já estava cego, mas mesmo assim foi dolorido. Depois disso, disse a mim mesmo que não queria ter mais cachorro, porém hoje em dia acho que teria um cachorro de novo.
— Você mora em casa ou apartamento?
— Moro em apartamento.
— Eu também.
— Eu não poderia ter um cachorrão do tamanho daquele que passou lá em casa. Um amigo meu tem um Golden Retriever e o cachorro é muito bonito, brincalhão, divertido, chama atenção, mas também dá um prejuízo. Eu não poderia tomar conta de um não porque não goste, é que não considero justo trazer para casa um animalzinho ativo, repleto de necessidades e, acima de tudo, de amor e proteção, para deixá-lo sozinho na maior parte do tempo e não dar tudo o que ele merece.
— O cachorro da família já está com quase 10 anos. A expectativa de vida é de uns 12 a 16 anos, mas nunca há como saber. Não sei nem imaginar a minha vida sem ele.
— Tem uma foto dele para me mostrar?
— Tenho mais fotos dele do que de mim mesma. Também pudera, o danado se faz de rogado, mas é fotogênico demais. — Ela procurou no aplicativo de fotos o álbum do cachorro e foi arrastando algumas imagens para o lado, apresentando-o ao reizinho.
— Ele teve muita sorte por ter sido resgatado pela sua família. Provavelmente, ele teria morrido naquelas circunstâncias em que estava. Vocês deram a ele mais do que um lar, vocês salvaram o mundo dele.
— Eu gostaria de ter conseguido trazer uma irmãzinha dele, parecia que todos estavam pedindo socorro, mas quando eu o segurei no colo, ele não queria sair de lá. Foi uma escolha difícil, senti medo de que ele não sobrevivesse, porém, apesar de todos os sustos, ele cresceu saudável e conquistou a nossa família.
Ela ofereceu-o um pedacinho de queijadinha, ele cortou um pedacinho de folheado para ela e os copos esvaziaram-se, a tarde caía lentamente e embora o céu ainda não estivesse escuro, a lua crescente apareceu. Eles poderiam conversar noite adentro, por muitas, muitas outras noites, mas não ali. Ela organizou as bandejas e entregou-as no balcão. Caminharam em direção à porta e por ali permaneceram por mais alguns minutos.
— Parece clichê, mas enquanto nós conversávamos, nem vi o tempo passar.
— Nossa! Senti o mesmo!
— Espero que você tenha gostado do convite e que nós possamos sair juntos mais vezes.
— Juntos, “só nós”?
— Juntos “só nós”.
— Podemos marcar outro dia, quem sabe um fim de semana. Se você quiser, claro.
— Eu gostaria de ficar um pouquinho mais, porém tenho de ir.
— Eu também tenho que ir.
Ele fez uma careta triste.
— A gente se fala? — perguntou ele.
— Claro!
Ele a abraçou com carinho, respeito e bem-querer, fechou os olhos e acariciou os fios do cabelo dela, que encostou a cabeça no peito dele. Pareciam um casal como tantos outros que por aquela rua passavam, que naquela cafeteria entravam e saíam. O toque estremeceu a ambos, tornava-se cada vez mais difícil encerrar aquele encontro.
— Cuide-se, tá? — Ele depositou um beijo no topo da cabeça dela. — Quando você chegar em casa, me mande mensagem, só para eu saber se você chegou bem!
A iniciativa dependia tão somente de coragem. E ela já havia deixado muitas oportunidades passarem.
— Posso ter estragado tudo, mas não estou mais conseguindo me conter.
Ele era aquele garoto que acabou de ganhar o primeiro beijo e abria os olhos para contemplar a sua menina, precisava certificar-se de que não era um sonho bom, daqueles que nos fazem acordar exultantes, era a realidade, quase sempre opaca e monocromática, mas que ainda sabia surpreender. Poderia atrever-se e admitir que estava pisando em nuvens, que a eternidade coube dentro daquele encontro de lábios.
— Eu sei que eu sempre estrago tudo… Ela abaixou a cabeça, sentindo-se envolta pela vergonha. A amizade seria ao menos uma forma de tê-lo sempre por perto, ainda que nunca passasse da determinação. Seria difícil ouvir que era linda, inteligente, simpática, divertida, legal, o sonho de muitas pessoas, não o dele. Não o de ninguém. — Desculpe-me por estragar tudo!
Ele cobriu os lábios dela com as mãos e, envolvendo-a pela cintura, respondeu-a com outro beijo. Tudo que deveria ser dito estava lá naquele ato de entrega e devoção. Beijavam-se apaixonados, pouco dispostos a seguirem medindo as palavras para sentirem-se seguros para dar um passo maior.
Dias depois, retornaram ao espaço de sempre. De mãos dadas. Os amigos não estavam tão surpresos porque, embora não se intrometessem, reparavam naquela admiração mútua que se dava, no quanto um perguntava sobre o outro, mesmo quando ainda não eram tão próximos e era impossível não perceber no brilho daqueles olhos a chama acesa do amor.
Curitiba, 14 de maio de 2023.
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