Cara rosa, ninguém nasce sabendo



Foi por uma fresta, um descuido não-intencional, semente que se desprendeu das mãos sem senso de direção, lançando-se à própria sorte para a terra, queria ser uma linda rosa, mais do que isso, ir ao encontro do seu devoto beija-flor.

Embriagou-se dessa ideia tão deleitosa, mas já não havia como trazê-la de volta à realidade, o desejo criava raízes. A interpretação sofre graves prejuízos na ausência de discernimento, doses moderadas de falsas esperanças aceleram o florescer.

O beija-flor sequer disfarçou o olhar deleitoso ao botão de rosa, sempre preterida pelas margaridas, azaleias e tulipas. O gesto — interprete como bem desejar, não nos cabe julgar — despertou nela uma ânsia de longas datas, em busca da peça que a tornaria, por fim, desejável. Havia olhos interessados em contemplar o desabrochar, não era uma florzinha jogada ao vento.

Ele já tinha uma rosa, no entanto, não tirava os olhos da redoma, o menino que não desgrudava do videogame novo e ignorava os outros brinquedos. A perspectiva de diversão insuflou as mesuras, ao que o beija-flor esfregou as mãos e contou os dias para a “primavera”, que chegou bem ao gosto do dono do jogo, habituado a dar as cartas.

Distante de ser poeta, mostrava-se hábil em dizer muito usando poucas linhas e, claro, deixar no ar que a via era de mão dupla… afinal de contas, o beija-flor havia se declarado e dito, sim, tudo que ela sonhava, que mulher no lugar dela não aceitaria ir ao céu?

A rosa teria toda paciência do mundo para esperá-lo terminar com a outra rosa e ficar só com ela. Seria doloroso, um sacrifício que poucos estariam dispostos a fazer. Tinha-o como amigo, um sentimento que poderia ficar guardadinho pelo resto da vida, sem incomodar ninguém, sem sequer exigir reciprocidade, se a consideração de uma amizade assim prevalecesse, porém, ele cometeu o erro de despertar nela essa esperança de que seriam eles contra o mundo, contra as convenções, contra os obstáculos. Ele não era bonito nem charmoso, não tinha conversas profundas, mas era o que estava disponível.

 Encontros sempre a deixavam apavorada, fugia deles, achava uma perda de tempo encarnar uma personagem falando frivolidades na mesinha quadrada da praça de alimentação do shopping, investindo em parcerias sem futuro. Queria ser paciente e deixar tudo acontecer naturalmente, entretanto, aqueles pensamentos intrusivos a assombravam, sem falar na comparação com outras moças, a pressão para deixar de ser ímpar, o medo de passar por esta vida em vão. 

Pela primeira vez havia aguardado o grande dia, era uma sensação diferente, a de descer cada degrau da escada rumo a uma felicidade incomparável. Havia chegado o momento de ser amada, o momento o qual esperava desde que se entendia por gente. Escolhera o vestido de poá preto para que o beija-flor a notasse, mas ele estava mais interessado em arrancá-lo dela para satisfazer certos desejos egoístas que ignoravam uma palavrinha que começa com a letra “c” e termina com “mento”. 

Dava para sentir que um copo de cristal se partiu em milhares de pedacinhos quando os bicos afiados do beija-flor despetalaram-na toda e a máscara caiu. Ele parecia outro, desprezava o que restou daquela sementinha de amor, queria se livrar logo dela, partir pra outra, por isso foi muito mais cômodo sumir sem nem sequer dar um ponto final, sumiu e a deixou nutrindo uma culpa tão grande que alcançou o gigante do pé de feijão. 

Toda manhã era a mesma luta contra as lágrimas, a angústia de a caixa de mensagens estar sempre vazia, espaço aberto para o desenvolvimento de suposições. Se de coração partido não se padece, como explicar aquela dor que rasgava o peito dia após dia?

Da inocência sobraram as ruínas, da alegria, só os retratos antigos, a inspiração foi obsediada pelo desejo de arrancar aquela dor. Dos versos se despejava a amargura, a loucura, a sede por reparação do orgulho ferido, não do amor, porque ela entendeu que amava a ideia de ser amada por alguém.

Enquanto isso, a outra rosa ostentava o conto de farsas, a maldita escolhida, critérios que a rosinha abandonada jamais entenderá, por que tinha de ser logo com ela? Ele já era bem grandinho para brincar de boneca, vamos combinar. Para a rosa, a desculpa era de que “disse sim para uma, não podia dizer sim para duas”, todavia, anos depois, deixou a rosinha sem mais nem menos, talvez porque não consiga amar ninguém além de si próprio, sem dar muita importância para os corações destroçados que foram ficando pela estrada da vida, tendo de se refazer porque não existe essa de ficar parada no tempo, esperar o perdão, porque caras que agem movidos pelo ego não vão racionalizar a situação, colocar a mão na consciência e lamentar a falta de caráter, de maturidade, de responsabilidade afetiva.

Ela nunca se esquecerá da energia empenhada naquela carta aberta redigida oito meses após a tragédia, somente assim o beija-flor pegou a dignidade de algum calabouço da alma e entrou em contato, relativizando o sofrimento da rosa para discorrer sobre as supostas lágrimas de crocodilo derrubadas, para sobrevir o “fora” que serviu de ponto final para ela entender de uma vez por todas que ele tinha todos os atributos que a sociedade aclama, exceto um, de todos o mais valioso, um coração.

Foram tempos difíceis na terra das joaninhas, reza a lenda que o sol desapareceu por tanto tempo que, quando voltou a brilhar, a rosa já não era mais a mesma de outrora, já conseguia falar daquele assunto sem chorar, porém, ela construiu um enorme cercado à sua volta, à prova de falsos beija-flores, enquanto voltava a florescer no outono, julgava melhor assim, precisava se defender, já não conseguia mais acreditar no amor, como poderia outro beija-flor amá-la depois de ter sido despetalada por um bruto insensível? E se fosse de novo enganada, maltratada e preterida? O beija-flor, lá no comecinho, estava acima de quaisquer suspeitas.

Cara rosa, ninguém nasce sabendo.


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