O reencontro com meus antigos amigos deu-me uma percepção real dos efeitos do tempo em todos nós. A vida havia realmente mudado para todos nós. Ideologias, estilos, paixões. Tudo. Éramos completamente diferentes daqueles adolescentes sonhadores de outrora.
Em janeiro eu completaria 30 anos e naquele ano sabático, no sentido figurado da expressão, eu fazia um balanço franco de todos os acontecimentos, buscando um sentido que justificasse minha existência.
Cruelmente dividida. Enquanto atriz sentia a necessidade de me reciclar, me aventurar num papel complexo, problemático, que mostrasse toda minha versatilidade. Enquanto mulher, o desejo de ser a esposa de Abel. Estávamos juntos havia cinco anos, éramos quase casados, apesar de não morarmos juntos. Não havia mais ninguém no mundo com quem eu quisesse estar. Ele era também o meu melhor amigo.
Em razão de nossas agendas sempre preenchidas por compromissos mil, nossas viagens românticas se limitavam a bate-volta para o litoral ou, quando muito, um descanso de três dias numa pousadinha rústica no interior. Nada de cadeados com nossas iniciais na ponte do amor, nada de planejar uma lua-de-mel em Veneza.
Eu nunca tinha o meu amor por perto no Natal, no ano-novo, naqueles momentos em que o colo dele acalmaria minhas preocupações, dormia sozinha.
Minhas amigas tinham certa invejinha da longevidade do meu relacionamento, queriam ávidas que eu lhes soletrasse a “fórmula do amor”, me perguntavam se o príncipe tinha irmãos ou primos para apresentar e eu sustentando a farsa porque, para quem já tinha vivido o caos, era melhor um amor calmo, sem grades para aprisionar, sem regras, mas totalmente franco.
Bem como diz um velho e sábio ditado: o pior cego é aquele que não quer ver!
Tive um pressentimento me indicando para não sair naquela sexta-feira à noite, entretanto, se meu namorado estava preso na revista para fechar a próxima edição, nada me impedia de sair para tomar uns drinques. No caminho, lembrei-me de um jantar para o qual fui convidada, entraria, marcaria presença e depois sairia à francesa, como de costume. Tudo ia muito bem até eu reconhecer Abel. Não era uma surpresa vê-lo, posto que tínhamos muitos amigos em comum e morávamos na cidade “onde tudo acontecia”. O que fez meu coração quase parar não foi a presença do meu namorado, mas descobrir que ele não estava desacompanhado.
Mais cedo ele não havia me dito nada sobre aquele evento.
Quem era aquela bruaca de vestido vermelho longo, coque no cabelo e cara de quem cheirou peido? E que aliança era aquela no dedo dele?
Até onde era do meu conhecimento, Abel Santiago era solteiro, não usava anel de compromisso e não mencionava outras mulheres.
Desalentada e sentindo o ar escapar dos pulmões, eu cairia de joelhos na escadaria daquele requintado restaurante, se não fosse o vexame e a chance de ser vista por algum fotógrafo. Um único clique na oportunidade derradeira seria prato cheio para os tabloides especularem sobre a minha vida.
E eu não vinha de uma fase boa: a última novela de que participei não obteve bons índices de audiência, minha personagem não caiu nas graças do público, ficando muito aquém das expectativas. A trama seguinte, na qual eu seria a protagonista, foi adiada, e nesse entremeio nenhum papel interessante aparecia.
A cereja do bolo foi colocada naquele momento em que vi o homem que amava de braços dados com outra mulher.
Não sei como cheguei até o carro porque, após entrar, chorei por longos minutos até dar a partida. Por não querer voltar para casa e esperar pelo telefonema que não receberia — porque agora sabia o motivo dos vácuos entre um encontro e outro —, saí dirigindo para matar tempo. Liguei o rádio para poder chorar alto. Chorar com música de balada, tudo a ver.
Se fosse um sonho ruim, essas confissões não existiriam, eu despertaria no meio da madrugada, babando no braço do sofá, quiçá iludida, quiçá agradecida, ainda sonhando em deixar um cadeado com as iniciais A & L na ponte do amor.
E eu não consegui pensar em mais ninguém naquela hora...
— Que sinistro! Você me disse que ele não usava aliança...
— Não usava comigo, isso sim!
Duas da matina, duas amigas chorando pitangas no sofá de uma quitinete cujo único televisor dava ibope a um programa religioso.
— Você me ludibriou, Laly. Quando você me falou sobre o Abel, confesso que senti uma invejinha, sabe, ele parecia o cara perfeito. Bom de papo, bom de cama, sincero, simpático, ambicioso, mas não demais, simples no jeito de viver e, ao mesmo tempo, corajoso o suficiente para assumir projetos audaciosos.
— Eu não ludibriei ninguém... — Minhas mãos ainda tremiam, mas bebi o copo de água com açúcar que Fernanda preparou para mim quando me viu naquele estado lastimável. — Minha ficha não cai.
— Posso imaginar.
— Eu não menti para tripudiar de você. Até poucas horas atrás eu jurava que era a única mulher na vida do Abel.
— Esse é cafajeste letrado, sabe dissimular tão bem que a menos que deixe um fio solto muito notável, passa a vida embromando e só tem os podres descobertos após morto, quando não mais cabe a ninguém julgar nada.
— Você acha que ele mentiu para mim todo esse tempo?
— Diante dos fatos, não duvido. Sem querer destruir suas esperanças, mas esse cara parecia perfeito demais para ser real.
— Não me diga que você pensou que inventei um namorado perfeito para tirar onda com a sua cara?
— Se tentou fazer isso, caiu do cavalo.
— Não, não tentei!
Cobri o rosto e encostei a cabeça no braço do sofá. Solidária, Fernanda fez carinhos nas minhas costas e me colocou no colo.
— Custava ser sincero, Fer? Custava falar toda a verdade? Jogar limpo comigo?
— Se tem algo que passa o tempo e eu não consigo entender, é comportamento de homem. Gostaria muito de ter bons conselhos para te oferecer, mas nada do que eu diga resolverá algo.
— Se eu soubesse que seria a outra, teria caído fora.
— Teria caído mesmo?
— Olha bem para a minha cara e veja se tenho vocação para ser segunda opção de alguém.
— Você tem a cara de uma mulher que aceitou ser segunda opção de um cara.
— Que desilusão, hem?
— Queria o quê? Que eu te dissesse mentirinhas agradáveis para você continuar iludida? — Fernanda endireitou a postura e foi bem enfática: — De mim não espere isso! Porque se ele ligar e passar conversinha em você, em uma hora vocês estão na cama, ele vem com a lengalenga de que o casamento vai mal, que não ama a dita-cuja, que nunca a amou, que só tem olhos para você, blá-blá-blá, te cozinhando em banho-maria. Pensa que nasci ontem, miga? Posso até passar por bobona, mas estou ligada nessas coisas.
— Eu ainda tenho dignidade.
— Tem mesmo? — Fernanda me desafiou.
— Agora eu já nem sei...
— Você nunca percebeu que as peças não se encaixavam?
Naquele momento, entorpecida pela dor, era difícil concatenar os argumentos e remexer na memória para captar os indícios que poderiam me ajudar a averiguar se antes, muito antes daquela desilusão, os sinais não estiveram claros e eu, por medo ou mesmo deboche, ignorei-os.
— Estive pensando com os meus botões... Lalinha, quando você o viu, tinha certeza de que era ele?
— É claro que era!
— E se você viu um cara parecido e confundiu com ele?
— Pouco provável. Era ele mesmo!
— Ele te viu e fez que não te viu? Lógico, né, Laly? O cara não vai dar mole para o azar.
Fernanda insistiu para que eu telefonasse para Abel, embora não fosse meu desejo naquele momento discutir relação por telefone.
— Tem linha... — Ela sussurrou, segurando o telefone em mãos.
— Desliga isso... — Pedi, aflita. Vai que numa dessas a bruaca tomasse o telefone das mãos dele e já ficasse toda grilada?
— Alô? — Abel atendeu.
Fernanda me olhou e eu seguia gesticulando que, fosse o que fosse, não iria falar.
— Alô? — Abel insistiu. — Alô? Alô?
Fernanda desligou o telefone.
— Ele está em casa.
— E daí?
— E daí que...
— E daí que o quê? Agora que começou, termina!
— E daí que... chegou a hora de vocês se sentarem e terem uma conversa franca, Laly. É sério. Já passou da hora, mas antes tarde do que nunca. Conselho de amiga.
Não sei ao certo o que ele viu em mim, especialmente o que enxergou naquela bruaca com cara de fome e de que cheirou uma bufa fedorenta.
A decepção maltratava a esperança, mas era muito mais deprimente passar altas madrugadas amargando a ausência. E tenho dito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Muito obrigada pela visita ao OCDM, espero que você tenha gostado do conteúdo e ele tenha sido útil, agradável, edificante, inspirador. Obrigada por compartilhar comigo o que de mais precioso você poderia me oferecer: seu tempo. Um forte abraço. Volte sempre, pois as páginas deste caderno estão abertas para te receber. ♥