CONFISSÕES DE LALY 10 ANOS | O REENCONTRO (a releitura do texto que inspirou a publicação da web novela)

 Olá, queridos amigos e amigas! Tudo bem com vocês? Espero que sim. *-*
Dez anos atrás, numa terça-feira ventosa, esta que os escreve abriu o bloco de notas e, inspirada pela proximidade do Dia dos Namorados, decidiu escrever uma nota aleatória da Laly, e desta simples tentativa vieram outras e as ideias encontraram um fluxo harmonioso para se manifestarem. Com isso, pensei, seria legal dar uma chance para uma novela que destoava totalmente de DDP. E foi a melhor decisão que tomei. Espero que gostem dessa releitura porque a escrevi com o coração, tendo de base a versão original. Apertem os cintos e entrem no clima. (= #ConfissõesDeLaly10Anos #EscritoraVirtualSim #ComOrgulho 


Tudo havia começado e terminado muito tempo atrás. O amor não passava de um tênue deslumbre nos recônditos mais inabitáveis da mente. Trilhamos caminhos distintos, cada qual com sua colheita. Entre glórias e desafios, éramos adultos.
Em tempos de exílio imposto, tudo que eu mais desejava para uma tarde de domingo era sossego. Apesar de ser mais produtiva à noite, um ambiente calmo seria o empurrão para trabalhar no meu romance, embora a inspiração e eu não estivéssemos dialogando no mesmo idioma.
 Tem planos para hoje, Lalinha?  Quis saber Fernanda, abrindo as portas do roupeiro para amontoar uma pilha de roupas em cima da cama e concluir com um biquinho muito engraçado que "não tem nada para vestir".
 Sossego.
 Tá brincando, né, Laly? Bora comigo na parada... vai ser lá na Avenida Beira-Mar, vai ter trio elétrico e tudo.
 Não tenho mais pique para danceteria, Fer. Meu tempo já passou!
 Deixa de besteira, amiga. Não tem isso, não. Venha se divertir. Ficar em casa não vai resolver nada!
 Como se sair fosse...
 Ué, pelo menos é um tempo que você fica fora de casa, respira um pouco, vê gente, revê...
 Não quero ser vista por ninguém!
 Ah, Lalinha, a May já me deu bolo porque no domingo quer ficar com o Nilton, agora você...
 E você não sabe sair sozinha?
 Sei, claro que sei, mas gosto de estar acompanhada e é meu dever te entreter.
Alguns minutos depois eu saí do banho e encontrei Fernanda vestida, maquiada, fazendo um penteado em frente ao espelho da penteadeira. Escolhi um vestidinho branco, calcei uma rasteirinha e deixei os cabelos secarem naturalmente e fiz uma maquiagem bem leve. Estava pronta.
 Vai paquerar muito?
 Vou dar uma força para o Mário. É a primeira parada aqui na cidade. Lá em Sampa a gente vai todo ano...
 Mesmo você sendo hétero?
 Sim... qual é o problema?
 Nenhum...
 Se quer saber, já fiquei com mulheres... Infelizmente, meu coração bate por homens, mas o deles parece não bater muito por mim. Fazer o quê? A gente pega os limões e prepara um jarro de limonada, coloca açúcar, uns cubinhos de gelo e brinda, mas não desiste.
Fizemos o percurso a pé porque não haveria condições de trafegar pelas ruas ao entorno de onde seria a 1ª Parada do Orgulho Gay da cidade. As expectativas eram grandes e de certa forma se cumpriram porque em vez do olhar hostil que eu temia, o clima era de festança. Todas as cores do arco-íris desfilavam no asfalto. As músicas que faziam sucesso nas pistas da dança ressoavam das caixas de som. Era uma tarde agradabilíssima, o tempo estava firme, o céu de um azul pálido tinha nuvens tão delicadas que pareciam ter sido desenhadas.
 Fernandoca!  Mário saudou Fernanda.
 Meu amor!  Fernanda sorriu.
Eles se abraçaram apertado. Os namorados de antes agora se tratavam como irmãos. Minha amiga era mesmo de outro mundo, poderia muito bem ter se tornado homofóbica depois de o namorado se assumir para ela, mas o acolheu quando o pai dele o expulsou de casa, repreendia quem fazia piadinha escrota (ainda fazem) e não permitia que ninguém o diminuísse por amar outros homens. Fernanda ressignificou o amor que sentia, transformou-o em algo mais belo ainda, conquistando para sempre um verdadeiro amigo, amigo elevado ao patamar de irmão.
 Que lindas! Ma-ra-vi-lho-sas!  Mário repetiu, nos cobrindo de mesuras.
— Não faço por menos...  Gabou-se Fernanda, brincalhona.
 Primeira vez aqui, Lalinha?  Mário voltou-se para mim com uma expressão de curiosidade.
Aquiesci.
 Eu duvidei quando a Fer disse que você viria, mas a Fer é uma danada mesmo, conseguiu te tirar do casco... divirtam-se, meninas! O dia está só começando!  Mário, animado, deixou-nos circular. Ainda tinha muitos amigos para abraçar, muita conversa para colocar em dia, ele tinha mesmo razão, a tarde estava só começando.
Fernanda estava tão animada com a organização do evento, dançando, cumprimentando velhos amigos, sendo apresentada a outros e se esforçando para me alegrar também, logo, por mais desanimada que eu estivesse, era mais do que justo retribuir.
— Miga, vou pegar fichas para a gente e já volto... a gente se encontra aqui, tá?  Propôs Fernanda e eu concordei.
Fernanda vinha se esforçando para não me deixar sozinha, me arrastava para todos os eventos possíveis e mesmo em casa sempre inventava de veneta alguma atividade que nos mantivesse ocupadas, aquele seu jeito de demonstrar afeto, de estreitar laços. Nunca caberia em meu coração o tamanho da gratidão que sentia por tê-la encontrado num momento da vida em que amizades verdadeiras soavam uma utopia tão grande quanto um amor eterno.
A Parada do Orgulho Gay era um território seguro  por assim dizer  porque as pessoas que eu menos esperava reencontrar nunca estariam ali... ou pelo menos eu julgava que não até mirar num sujeito de ombros fortes, largos, de vestimentas brancas... e quando ele virou-se na minha direção, senti um gelo no estômago...
Eu conhecia aquele olhar!
Enigmático, distante, meio debochado, passível de infinitas interpretações e divagações. Marrom, estreito, um velho conhecido, um verso esquecido. Era Iury.
Iury Saciotti.
Numa telenovela a cena do reencontro do casal principal após longos anos sem nenhum contato é trabalhada para mexer com todos os sentidos do telespectador. A expressão dos personagens precisa convencer, a sonoplastia capricha na trilha de fundo e um olhar mais apurado dos editores de vídeo transforma o roteiro escrito numa verdadeira obra de arte. Ficamos sem fôlego em frente à tela, vendo os créditos do final do capítulo subirem, cheios de expectativa para o desenrolar da situação.
O reencontro dos mocinhos reacende velhos desejos, abre feridas, expõe um atalho até então despercebido. É impossível ser indiferente. Muito embora minha vida fosse uma novela às avessas, um clichê ou outro se reciclava e lá estava eu, Lalinha, a alguns passos de uma porta do meu passado que eu não desejava abrir tão cedo. A bem da verdade, eu desejava não abri-la nunca mais.
Iury não era mais o menino surfista, franzino, com espinhas no rosto, era um homem, um homem de expressão dura, estrutura física mais robusta, de quem não devia pegar numa prancha havia uma década. O tempo deixou marcas bem profundas nele. Se não fosse o olhar, eu não o reconheceria no meio de uma multidão.
E aqueles olhos amarronzados me devolveram o olhar. O vislumbre de surpresa foi recíproco. O choque era tamanho que vi-me dentro de uma teia de confusão, insegurança e certo receio. Eu não estava preparada para um reencontro, já havia desencanado de lutar por Iury quando fui obrigada a resgatar a dignidade e ser uma garota grande, quando me vi completamente só e precisei criar um escudo invisível à minha volta para não ser sugada pela correnteza.
Havia muito a ser dito e ao mesmo tempo o silêncio formava uma barreira entre mim e ele, agigantando a inoportuna timidez.
 Laly!  Ele apertou os olhos, crente que meu rosto não lhe era estranho.  Laly?
 Sim, sou eu... Iury?
 Você... se lembra de mim?
 E como não me lembraria? Puxa vida, como você está diferente!  Iury abriu um sorriso.  O tempo foi muito indulgente com você.
 São seus olhos.
 Não esperava vê-la, mas o Nilton bem que tinha me dito que você veio passar uns tempos aqui. O que te trouxe até esse pedaço de mundo?
Não era momento de iniciar um monólogo tragicômico sobre a crise dos 30, a decepção com Abel e a incerteza vocacional. Não havia necessidade de ser blasé, tampouco de irromper em lágrimas e despejar lamúrias.
 Decidi tirar um tempinho para mim, voltar às raízes... de vez em quando é bom tirar um tempo para si.
 Está aí algo que eu não sei o que há anos. Meu reino por um descanso, mas são os ossos do ofício.
 Pensei que você ficaria em Curitiba ou em Floripa mesmo.
 Terminei minhas residências e passei num concurso público para trabalhar num hospital aqui. Também não faz muito tempo que eu voltei, ainda estou me acostumando. E aí, o que está achando daqui?
Nem tive tempo de responder porque logo alguém abordou Iury para pedir ajuda. Quando Fernanda voltou com dois copos cheios de bebida, entregando-me um, questionou:
 Tudo bem, Laly? Está passando bem?
Apanhei o copo e bebi-o de uma vez só.
 Lalinha do céu, você nem imagina quem está aqui hoje!
Fiz-me de desentendida.
 O Iury. O Iury está aqui. Menina, esse mundo é um ovo!
 E eu que o diga!
— Página virada?
Dei de ombros.
— Aaaah, vai... não ficou com uma pontinha de curiosidade de ver o Iury? — Fernanda me rodeou, terminando de beber, insistindo para que eu lhe respondesse. — Certeza que você superou? Que não sente nadinha? Que ficou tudo, tudo, tudinho, lá no passado? Aposta quanto? Aposta quanto que suas pernas não tremeriam só de ver o Iury parado na sua frente, para um tête-à-tête?
— Não sei, Fernanda. Não sei.
— Ele não é casado, que eu saiba, não tem ninguém. Se tivesse, a May teria me contado, já que o Nilton e o Iury continuam carne e unha.
— Estou com cólica... quero é minha cama!
— Não acredito que você vai embora...
— Você me conta o que rolou por aqui depois que voltar.
— Fujona!
Mostrei a língua para Fernanda, que provocou fazendo barulhos de beijos.
Dez anos antes, quando eu ainda estava presa às memórias de adolescente, fechava os olhos e imaginava esse reencontro de mil maneiras e no fim das contas o acaso me pregou uma peça e tanto. As falas decoradas foram descartadas, a trilha de fundo era uma música alegre e toda aquela excitação de menina deu espaço a uma polidez diplomática.
Crescer era aprender a atuar, não exatamente mentir, mas aprender quando e como se revelar, quem merecia tamanho empenho, também era lidar com os improvisos no script e não deixar a peteca cair. Ainda assim, encarar tantos sentimentos revoltos e mal digeridos requeria a maturidade que eu não tinha porque tão logo vi Iury, tudo que estava enterrado — ou ao menos adormecido — voltou à tona. A cólica era a carta na manga para colocar o choro em dia.
Eu não chorava pelo amor perdido porque antes do abruto término, as estruturas do relacionamento a dois já estavam embaladas por ruídos na comunicação, desconfiança, traição, desencontros, segundas e terceiras pessoas, objetivos incompatíveis e desejos que não se entrosavam.
Eu chorava por mim mesma. Por aquela garota que não pôde chorar quando se viu completamente só. Pela inocência arrancada com tanta violência. Pelas palavras de amor queimadas pelas crepitantes labaredas da decepção. Pelos sonhos que ficaram pelo caminho. Lavar a alma era o que estava ao alcance. A notícia boa quando se enfrenta uma crise, qualquer que seja ela, é saber que no fundo do poço tem uma mola, que um dia o precipício acaba e lá do alto se vislumbra um feixe de luz, sendo a motivação de quem necessita de um único motivo para se manter viva.
Entre pensar e verbalizar, a autenticidade escorre pelos cantos, o julgamento consome boa parte do discurso. Enquanto cronista, a sincronia entre as pontas dos dedos e as teclas permite uma catarse mais franca e menos maquiada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Muito obrigada pela visita ao OCDM, espero que você tenha gostado do conteúdo e ele tenha sido útil, agradável, edificante, inspirador. Obrigada por compartilhar comigo o que de mais precioso você poderia me oferecer: seu tempo. Um forte abraço. Volte sempre, pois as páginas deste caderno estão abertas para te receber. ♥

Mary Recomenda | Querida Kitty - Anne Frank

  Hoje é sexta-feira e nada como sextar acompanhando o Mary Recomenda. Na edição de hoje, nossa convidada especial é Anne Frank e sua Queri...