Travessia

Viver é afrontar o sistema que tenta enfiar minha cabeça na banheira desde o meu primeiro choro.

Esse espaço destinado a mim foi outra falácia cantada pela positividade tóxica, nunca existiu. Todas as tentativas de permanecer fracassaram, o mundo pisoteou todas, todas elas. Jogaram-me de volta ao inferno pessoal do ensino fundamental, onde voltei a ser menina de nome feio e zero valor, a que sobra, acostumada a engolir migalhas e ainda agradecer aos abusos porque "poderia ser pior". Pouco com Deus é muito. É muito o caralho. Deus não deve estar nem aí.

Privilégios distribuídos de forma desigual, esfregados na minha cara, dia após dia. A inclusão é uma palavra muito bonita e significativa, mas jamais se aplicou a mim. Normal demais para ser autista, anormal demais para ser "uma delas". Não tenho aliança no dedo, nem gente sou, tampouco queridinha de alguém. Não tem ninguém me indicando para um cargo melhor, para um extra, me notando sem ser para dar ordens e dar palpites, me comparar com a fulana que faz assim, não assado, só porque ela não é a eterna menina do nome feio.

Aquela que é interrompida quando tenta falar, que se esforça para ser amável e se vê excluída do outro lado do balcão, para quem sobra só atender os torcedores grosseiros que jogam o ticket na minha cara e nunca dizem "obrigado" e "boa noite", enquanto outras ganham gorjetas e número de WhatsApp no final do jogo. Talvez eu fosse mais feliz se fizesse escova progressiva, unhas de gel e tivesse aquela coisa chamada cílio postiço... talvez os rapazes me tratassem melhor, porém lembro o que eles pensam das que já passaram dos 30 e que minhas referências entregariam meu delito muito facilmente, mentir a idade para me testar alguma chance de não ser hostilizada pelo simples fato de respirar.

"Você pensa demais nesses bichos, isso aí é carência. Está na hora de arranjar um namorado, menina!"
"Você é autista?"
"Não, você não é autista porque você se comunica perfeitamente..."
"Já está na hora de arranjar alguém."
"Depois dos 30 tem que pegar o primeiro que aparecer porque não existe essa de amor, a gente aprende a gostar da pessoa, isso vem com o tempo!"

Minha vida vale menos do que uma bandeja cheia de costela desfiada, bora mandar a otária embalar bolinho de costela na câmara fria, ver o risinho das outras colegas, limpar o resto de comida dos pratos da choperia enquanto a música sertaneja estoura meus tímpanos e destrói toda a dignidade, lembrando mais uma vez que sou desperdício de carbono neste mundo asqueroso, contaminado pela futilidade e desigualdade de um sistema que premia a burrice e alienação coletivas e pune os que pensam, onde vencem os puxa-sacos e a promoção é conferida aos trapaceiros.

Quando perde-se o sentido e a direção, nem sempre há uma bússola a indicar o caminho... quando o próprio mundo não almeja sua presença e você age como aquele cachorro que corre em volta do próprio rabo, na vã ilusão de que suas preces serão atendidas, mas não irão. Nunca foram. 

Sei por mim. Tanto sonhei, mas enquanto algumas largaram numa corrida sem obstáculos, o meu maior foi sobreviver. Não tive padrinho, nem patrocinador, só quem me empurrasse no chão, gente perturbada que deduz minha vida como "fácil" e de longe tenta complicá-la, querendo roubar a única coisa que ainda não me tiraram, que é a capacidade de expressar sentimentos através das palavras que não só ela, mas muitos querem calada. Eu só teria valor se fosse viral, se vivesse tirando foto com a maçã mordida à vista no espelho.

O que fazer?

Anestesiar-me da realidade com efeitos colaterais?

Esses comprimidos não aliviam o fardo de ser uma existência sem propósito. A rejeição de 36 anos continua vivida dentro do meu peito. Continuo sendo a amiguinha, a doce, meiga, inteligente, brilhante, talentosa, profunda, honesta, trabalhadora, mas jamais boa para ser a namorada, a esposa, a melhor amiga, fazer parte da panelinha ou mesmo poder ser reconhecida pelo que dizem ser arte.

Peso mais de 50kg, assinei meu suicídio social. Não sou mais desejável. Sou só aquela barriga maldita que passo fome para eliminar e a caneta custa caro, a caneta da liberdade está muito acima das minhas possibilidades, como tudo que sonhei para mim um dia. 

Fui boazinha demais, só tomei no cu. Não quero mais abaixar a cabeça, não quero mais tentar.  Vou tratar os outros do jeito que o mundo me trata, vou jogar com as mesmas armas, jogar limpo nunca me trouxe nada de bom, ser justa abriu precedentes para ser abusada, todos sabem não passar de hipocrisia barata.

Meu tempo foi sem sequer ter chegado. Fui como a ideia que morreu antes mesmo de ter o direito de ser ruim, meus caros. Continuem a programação normal... 

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