Boa tarde, amigas e amigos! Aqui vai uma super recomendação de livro. Preparem-se porque a resenha vai ser extensa!
Título: Auto do busão do inferno
Autor: Álvaro Cardoso Gomes
Editora: Ática
Ano de publicação: 2007
Total de páginas: 170
Auto do busão do inferno é uma obra do escritor brasileiro Álvaro Cardoso Gomes, publicado pela Editora Ática no ano de 2007, tratando-se de uma contextualização do clássico português “Auto da barca do inferno”, de Gil Vicente, para o Brasil atual (de certa maneira, muitíssimo).
Na primeira parte nós somos apresentados à professora Lola, uma jovem que se formou em Letras e vai encarar o desafio de lecionar para o 1ªA, a turma mais bagunceira da escola. A professora sabe que o método de ensino de alguns colegas de profissão não valorizam as competências pessoais de cada aluno, o ritmo de aprendizado de cada um, apenas jorrando os conteúdos cobrados no vestibular, sem ensinar os estudantes a contextualizarem o que aprendem, não valorizando o ponto de vista deles, o que faz muitos odiarem a escola, terem antipatia pela literatura (especialmente pelos clássicos), estudarem apenas para passarem de ano. Seguir o conteúdo da apostila apenas para cumprir prazos, de modo que muitos decoram para fazerem as provas, porém não aplicam o que aprenderam no cotidiano e se esquecem disso.
Logo nos primeiros capítulos a Lola enfrenta isso na pele quando vai trabalhar em uma escola e é obrigada a seguir a desestimulante apostila que foca apenas no vestibular. Quando resolve por conta própria contextualizar para estimular os estudantes, estes passam a gostar mais da aula dela, a participar mais, porém essa medida desagrada à Matilde porque a ordem era seguir religiosamente o conteúdo da apostila, a gananciosa diretora da escola Aprender Aprendendo, ou seja, a apostila gerava lucro, fazia sentido.
Mesmo assim, Lola não desiste. Ama a profissão. É uma profissional extremamente dedicada e comprometida, portanto, posso dizer que ela vale muito mais do que o seu salário porque não trata os alunos como números.
Seu namorado, Arthur, a quem conheceu na faculdade (ela estudava Letras e ele Economia) sente-se um tanto quanto enciumado com todo o empenho dela. Ele quer que após o casamento a esposa trabalhe menos, no entanto, a professora almeja manter a independência financeira também, motivo esse de muitas discussões entre o casal, e do término do namoro também. Ele, apesar de amá-la, não entende que do mesmo jeito que ele ama e valoriza o seu trabalho, ela também valoriza o dela. São amores diferentes, um não anula o outro.
O narrador citou duas visões diferentes que a Lola teve sobre os textos de Camões. Na escola a personagem detestava porque a professora não fazia os alunos mergulharem naqueles versos, no que eles realmente exprimiam, fazendo parecer que eram difíceis, enfadonhos, sem sentido algum. Na universidade, outra professora, amante da literatura, sensível e comprometida, conseguia-a mostrar todo o potencial de Os Lusíadas.
Quem por exemplo nunca gostou de determinada disciplina, mas por causa de um professor especial passou a prestar mais atenção nas aulas? Não falo apenas de paixonite, falo de comprometimento, de respeito, admiração.
Na segunda parte do livro nós conhecemos o líder do fundão, Luís Alberto ou Tato para os amigos e conhecidos. Os professores têm o Tato como um problemático, um bagunceiro incurável, mas desconhecem o contexto em que ele vive. Os pais dele se separaram há alguns anos e Jaime o pai, é viciado em trabalho, aquele tipo que a carreira vem em primeiro lugar superando até mesmo a família. O Tato não diz, porém sente falta de um contato maior com ele, uma relação de verdade. Apesar de na escola ser o baderneiro, ele tem um lado poético e sensível, ama literatura e é um devorador ávido de livros. É muito interessante as citações ao Kafka, a Dostoievski, autores esses que normalmente adolescentes não curtem muito.
Tato é um poeta nato, um garoto que tem potencial para fazer grandes coisas, mas que vem canalizando isso da maneira errada, tanto é que por muito pouco não é expulso da escola. A dedicação de Lola, porém, consegue com que o jovem se comprometa a fazer algo que no caso é o trabalho (ou melhor, atividade) sobre Auto da Barca do Inferno, do Gil Vicente. A beleza desse livro é justamente mostrar o quanto a literatura lá do século XVI é completamente atual, com críticas sociais pertinentes, sabem por quê? Porque apesar de os personagens mudarem ao longo do tempo, a essência dos pecados é a mesma: a soberba, a ganância, a inveja, a mentira.
Quem julgou esse livro enfadonho certamente por ter lido para fazer uma prova ou um resumo com certeza perdeu de entender a maior lição: não conseguiu captar a essência dessa paródia, talvez porque você seja como o Tato, que ainda não descobriu todo o seu brilho ou como a professora Neide, que exerce sua função sem satisfação, algo que é refletido no exterior das suas atitudes ou ainda como o Jaime, aquela pessoa que não percebe que as coisas mais importantes da vida são as mais simples. Parece um chavão, não é? Talvez se um dia você reler, entenda o que eu quero dizer.
O último ato é a apresentação da peça propriamente dita montada pelo Tato e pelos seus amigos do Fundão, todos conhecidos pelo apelido (Soraya = Ema, Renata = Mortícia, Wander = Coruja). Essa turma costuma colocar apelidos em todo mundo, inclusive nos professores. Em vez das barcas, são os ônibus. O professor é o primeiro a ser julgado. Não obstante, é condenado pela soberba. O fidalgo é o político arrogante que ludibria o povo e acredita que não será condenado porque tem “direitos especiais”.
Vocês não perceberam como isso se assemelha com a nossa realidade? E vocês pensam que os jovens não compreendem?
Claro que sim!
E muito possivelmente essa é uma das razões pelas quais a juventude não acredita na política e tampouco nas raposas velhas que querem se perpetuar no poder, sendo “do povo” apenas nas eleições, enquanto convém. Depois do político corrupto vem a socialite fútil (seria redundância?) que como muitas pessoas da atualidade só se importam com a beleza exterior, a ostentação, os bens materiais, pensando que se houver outra vida (no caso) levarão tudo o que pensavam ser importante aqui nessa vida.
Assim como no texto original, o tolo é absolvido de seus pecados. Os cavaleiros são substituídos pelo motoqueiro que morreu enquanto trabalhava.
Os jovens conseguiram traduzir para a atualidade o texto de Gil Vicente que mesmo sendo crítico, nunca foi ofensivo, porque mesmo expondo as mazelas da sociedade, nunca teve um tom agressivo.
Esse livro pode ser a salvação de muitos Tatos Brasil afora. E para as Lolas de plantão, fica aqui o recado dessa leitora: nunca desistam! Seus esforços fazem a diferença, não importa qual seja a sua área de atuação, seja a melhor, faça por amor. Tudo o que é feito com amor nunca será uma causa perdida.
Recomendaria para que os professores de Língua Portuguesa que lecionam para os primeiros anos do Ensino Médio usassem o “Auto do busão do inferno” como um reforço para auxiliar os alunos a se afeiçoarem ao clássico do Gil Vicente, uma vez que através do exemplo, os jovens vão conseguir compreender que o que iguala as duas obras são as críticas sociais feitas sempre com refinamento e inteligência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Muito obrigada pela visita ao OCDM, espero que você tenha gostado do conteúdo e ele tenha sido útil, agradável, edificante, inspirador. Obrigada por compartilhar comigo o que de mais precioso você poderia me oferecer: seu tempo. Um forte abraço. Volte sempre, pois as páginas deste caderno estão abertas para te receber. ♥