Boa tarde, amigas e amigos! Vendo o arquivo do blog, lembrei-me de ter esquecido de programar a resenha de domingão. Bem, espero ter evoluído alguma coisa desde a primeira edição. Sabem como é, estou tentando ler dois livros ao mesmo tempo porque na faculdade o tranco será pesado e tal e assim quem sabe entre as tarefas acadêmicas eu encontre um tempo para o lazer literário.
Vocês já devem ter percebido que, com uma exceção ou outra, tenho um gosto diferente para a literatura porque tenho interesse em ler obras que me tirem da zona de conforto, me estimulem a enxergar o mundo além das dicotomias e, dentro do possível, despir-me de pré-conceitos.
Enfim, a recomendação de hoje é de um livro que terminei de ler faz o quê? Menos de duas horas... Quis escrever minhas considerações piradas sobre ele antes de me esquecer de tudo.
Título: Feliz Ano Velho
Autor: Marcelo Rubens Paiva
Editora: Brasiliense (23ª Edição)
Ano de publicação: 1986
Total de páginas: 232
"Feliz Ano Velho - Marcelo tocava guitarra, jogava futebol e estudava engenharia agrônoma. Aos vinte anos, sofreu um acidente que o deixou paralítico. Feliz Ano Velho representa sua vida.Dizer que é um relato de vida comovente é fazer um pacto com o lugar comum. Mas e daí? Lugar comum também não pode ser uma imagem que bate fundo no coração de todos, que pega, pela emoção, cada um de nós? Que é comum a todos? Coisas da vida, da morte, do amor, quando narradas sem pieguice, são comoventes. Sem embargo do lugar comum."
Encontrei esse livro aqui em casa, no antigo quarto do meu irmão. Esse título não me é estranho, pensei.
Que tal ler?
Ótimo! Comecei a ler na última sexta-feira de manhã e concluí o livro hoje, numa tarde tranquila de domingo. Sem dúvida, é um livro muito bom, narrado pelo próprio Marcelo Rubens Paiva, ou seja, é uma história real, em que acompanhamos a trajetória do Marcelo começando pelo acidente que mudou toda a sua vida, mas apesar de ser muito trágico, não é um dramalhão exagerado. É comovente, porém sem pender para o exagero.
Marcelo era um jovem universitário, um músico talentoso, jogava futebol, namorava muito, era enturmado, aproveitava bem a sua juventude. Vinte anos completos, um futuro incrível pela frente, um futuro que mudou em poucos segundos.
BIIIIN.
No dia 14 de dezembro de 1979.
Não parecia perigoso, afinal, era só uma brincadeira. Um salto mal calculado, a queda, e... BIIIN.
Já era.
Aquele futuro, fosse como fosse, já era.
Tudo mudou.
Assim mesmo, de uma hora para outra.
Flerte com a morte. Essa foi por pouco. Por pouco mesmo. A vida venceu. Mas não será aquela de antes.
Os primeiros dias na UTI são os mais decisivos, com toda a certeza.
O que esperar? O que vai acontecer?
Um mês.
Tanta coisa acontecendo, o mundo continua girando, mas as pessoas mais queridas para o Marcelo estão ali, cuidando dele, solidárias. Estou convicta de que esse carinho que ele recebeu também o ajudou a se recuperar. Ele teve muita gente boa o amparando, ao seu lado. Muitas pessoas mostraram o melhor lado de si mesmas. Ele teve sorte de poder contar com amigos de verdade numa fase em que normalmente a maioria das pessoas não tem estrutura para lidar e some. Mesmo que ele não se sinta um herói, ele é sim. Ele é um sobrevivente. Ele suportou bravamente a cirurgia, assim como teve de aprender a viver sem o pai.
Marcelo Rubens Paiva é filho do ex-deputado Rubens Paiva ― desaparecido e morto pelos militares em 1971, quando Marcelo era uma criança. Sua família assim como muitas outras sofreu a indefinição, a dor de ter notícias desencontradas sobre os entes queridos sumidos, então mesmo que eu tenha nascido depois do fim do governo militar, só de pensar no que foi a repressão desses anos de chumbo, acho sim que quem faz apologia à intervenção militar devia ser preso, porque é debochar do sofrimento de quem viveu o inferno na carne e na navalha, no pau-de-arara. Cuspir na dor do filho que cresceu sem o pai, da esposa que nunca soube se era casada ou viúva, da mãe que perdeu o filho. Considero justas as manifestações de rua porque já que vivemos tantos anos sem termos direito a votar, sob uma censura cruel, sem ter o direito de expor o que realmente se pensava sobre o governo, acredito que as pessoas devem ter sua opinião formada em política (qualquer que seja a ideologia: direita ou esquerda), porém discordo do ódio contra minorias, daquela baixaria de desejar a morte de políticos (por piores que eles sejam), mandar a presidente “ir transar”, usar suástica e blábláblá. Tem gente que acaba exagerando no ódio, então é por isso que eu não discuto política, porque infelizmente com a internet, algumas pessoas se prevalecem do dito anonimato para despejarem o que de pior há em si. Tudo o que espero é que as coisas melhorem.
“Vou usar um velho chavão, mas é verdade que não é matando um corpo que se elimina um homem.” (p.65).
“Chegará o dia de quem desapareceu com Rubens Paiva, assim como chegará o dia dos que desapareceram com vinte mil na Argentina, porque esses desaparecimentos têm o mesmo significado. O sadismo de alguns imbecis que apenas por vestirem fardas e usarem armas se acham no direito divino de tirar a vida de uma pessoa, pelo ideal egoísta de se manter no poder.” (p.65).
Marcelo narra cada etapa do seu tratamento, passando da transferência da UTI para um quarto normal, a evolução do tratamento (o tal do colete de ferro no pescoço enquanto a vértebra não calcificava), a passagem para a cadeira. Nossa! Não é fácil! Nas primeiras tentativas de inclinar a cama o Marcelo desmaiou. Tudo foi sendo feito gradativamente até o Marcelo conseguir andar pela casa e retomar a sua vida. Ele divide com os leitores as suas amizades, as paixões, família, música, sexo, filosofia, política. Gostei dessa sinceridade. De falar abertamente sobre as coisas sem aquele pudor falso, sobre a virgindade feminina, algo que naquela época era um tabu enorme. Ainda é, em partes, mas muito menos do que já foi.
“A primeira vez de uma mulher é muito importante. Tem a relação de dor e prazer. Só com um cara que ela gosta pacas, e no qual tenha uma tremenda confiança, poderá ficar à vontade. É um momento forte de libertação, um rompimento com os dogmas ensinados pela sociedade, desvinculação com a família, com a Igreja, que nós homens nem imaginamos como é duro. Também nem daria pra imaginar. De nós, homens, ao contrário das mulheres, sempre foi exigida uma potência sexual. Tínhamos que transar com prostitutas pra provar pros nossos coleguinhas que éramos machos. Nossos pais (o que não foi o meu caso) nos incentivam a ter uma conversa de homem pra homem”, onde era oferecido um dinheirinho ou uma secretária.” (p.183).
“A mulher sempre aprendeu, desde a infância, que ter prazer e fazer sexo era um atributo das prostitutas, e que homem que se preza gosta mesmo é de casar com uma virgenzinha limpa. Deixar penetrar ou não aquele negócio duro dentro de seu corpo passa a ser uma opção entre ser vagabunda ou uma menina.” (p.183).
Os primeiros meses são sempre os mais difíceis.
“Uma vez minha mãe disse que na vida não se deve fazer muitos planos. É verdade. A parte do meu cérebro em que estava armazenado o futuro desintegrou-se. E é terrível não ter a menor ideia do que vai acontecer daqui a um ano.” (p.207).
Peguei esse livro para ler justamente num momento da minha vida em que estou tentando fechar certas feridas de autoestima que me fazem pensar que sou a pessoa mais infeliz e azarada do mundo porque não levo a vida dos sonhos, aquela vida que eu achei que teria quando era criança, que com a idade que tenho hoje eu estaria casada, seria uma grande jornalista, uma escritora famosa e talvez tivesse uma filhinha, moraria longe daqui, etc, etc. No fim, a vida tinha outros planos para mim. Dizem-me todos que eu me cobro demais e que “tudo tem o seu tempo”. Que não é a minha hora de ser reconhecida como escritora. Que o verdadeiro amor ainda não chegou.
Talvez eu não esteja dando o devido valor para as minhas pernas (posso não ter as pernas de uma modelo da Victoria’s Secret nem os cabelos louros esvoaçantes de uma miss ou os olhos azuis que hipnotizam a todos, mas tenho uma saúde maravilhosa e estou viva, enxergo bem, posso fazer o que quiser, posso ser feliz, ser amada, recomeçar), para esse simples ato de caminhar de um cômodo a outro, de ser independente, poder dançar, pular, correr, me exercitar. Porque numa dessas, a vida pode mudar e eu posso acabar sentindo falta daquilo que eu tinha. Nós nunca sabemos o quanto algo é importante para nós até que o percamos.
Foi isso que o livro me disse.
“O negócio é o seguinte: o passado aconteceu, foi bom, mas não volta mais.” (p. 214).
Foi aquele estalo que está me fazendo repensar se estou vivendo de verdade ou apenas existindo por aqui.
Livros bons nos balançam.
Meu pai não foi arrancado de mim pela ditadura, minha mãe não foi presa por milicos que se achavam acima do bem e do mal. Posso sair daqui do quarto, ir lá na sala e abraçá-los. O Marcelo Rubens Paiva (e tantos outros órfãos da ditadura) não tiveram esse mesmo privilégio. Marcelo não pôde dar um beijo de despedida no pai. Não é nem a questão de comparar para mostrar qual sofrimento é maior ou menor, mas parar para pensar que às vezes a sociedade enche a sua cabeça com tanta merda que você reclama por banalidades e deixa de viver a juventude. Queria ter vivido nessa época dos anos 1970/1980, queria ter visto aquelas novelas de verdade (não essas porcarias cheias de incesto, matança, vingança, sede de poder, futilidades) que tinham audiência, enredos interessantes, queria ter vivido nessa época em que o futebol brasileiro ainda era bom, e eu pude experimentar um pouquinho disso lendo esse livro, imaginando as festas que o Marcelo descrevia, as pessoas sendo elas mesmas, todo mundo curtindo a vida, amando, beijando, fazendo amor, sendo jovem, diferentemente de agora que todo mundo só se importa com a aparência e te julga sem te conhecer... Como é que se fala? Produção em série. A originalidade está em extinção, sinto informar.
Esse livro me deixou reflexiva demais, tipo o do Renato Russo (resenha em breve). Dá vontade de chorar, de reler, de viver mesmo a plenos pulmões (com consciência, é claro!), valorizar esse coração batendo aqui no peito, valorizar essa vida que eu venho vivendo tão mal, mal por ser ingrata, por achar que o final feliz é o único objetivo.
Se o que foi não volta mais, vamos viver com o que restou. A gratidão é a energia que move o mundo, vamos praticá-la mais e julgar menos.
Feliz Ano Velho pode ser considerado “pesado” para alguns, mas recomendo esse livro para os jovens que desejam conhecer a história do Marcelo Rubens Paiva e também estudar um pouco mais sobre o dia que durou 21 anos.
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