O fruto de um quase amor

 Conto de 2015 revisado e publicado.




Curitiba, 11 de setembro de 2015.


Mãe. Palavrinha pequenininha, sagrada e altamente poderosa. O codinome da heroína de infância, aquela que com um beijinho fazia sarar os machucados no joelho, cujo colo quente formalizava acordos com o bicho-papão e ele ia embora, ali não criava terreno.
Aquela que sempre encontrava os objetos “misteriosamente desaparecidos”, que consertava o que parecia estar perdido, que deixava lamber a massa do bolo na tigela e a untar a forma quadrada. Bastava chamar, ela sempre estava lá, jovem e vigorosa, pronta para varar a noite cuidando de criança com febre, decorando a cestinha de páscoa, enrolando os docinhos para o aniversário, para o que desse e viesse, não dormia em paz antes que todos estivessem em casa.
Aquela que chorava de emoção lendo cartões feitos na escola com giz de cera, papel crepom e o que mais ditasse a criatividade. A leoa que distribuía broncas ao ver notas vermelhas no boletim e apaziguava os sermões do pai.
Seu coração tinha um pedacinho em cada canto porque pertencia a cada um de nós. Uma mãe diferente para cada filho. Dentro do possível e aprendendo conosco a conciliar o amor, o tempo e a atenção também. Tentando, no meio de tantas pressões, não anular a feminilidade nem a personalidade, porque antes de ser mãe, ela era uma mulher. Mesmo intencionada a abraçar o mundo, nem sempre pôde, porque nem sempre pôde nos poupar dos sofrimentos que teríamos desde que saíssemos de casa para ir à escola, então lhe restou, pelo menos, a oração. Com sabedoria e paciência crescer junto conosco porque decorria a partilha de saberes que livros não ensinam, apenas o passar dos dias e as reflexões que cada um faz no silêncio da noite ou em qualquer outro momento igualmente icônico.
Em poucos meses, esse esboço de gente vai segurar um bebê nos braços. Não foi planejado. Os sintomas ainda confundem, mas parece que esta vida que está chegando enche o meu peito de esperança. O pai da criança não pode saber, afinal, faz mais de dois meses que não conversamos. Tenho minhas dúvidas se signifiquei alguma coisa para ele. Não é fruto de um amor porque, sendo unilateral, traduz-se em engano, porém amo um ser que ainda não tem sexo nem nome, do tamanho de uma sementinha de maçã e logo estará nos meus braços.
Por enquanto é um segredo debaixo do meu travesseiro. Só quero revelar aos mais íntimos quando tiver certeza porque seria péssimo criar expectativas e depois despetalá-las sem dó, de modo que as silenciosas transformações que decorrem semana a semana preparam minha anatomia corporal até então imaculada para a gloriosa dádiva de ser mãe.
Não sou como aquela heroína sem distintivo que descrevi no início. Não sou sábia nem responsável. Não sei preparar o feijão daquele jeito que todo mundo que come quer saber o segredo. Nunca morei sozinha. Não conheço do mundo mais do que a praia. Nunca soube quão árduo é ser o pilar psicológico, cívico e moral de uma família, estar no topo da hierarquia e, muitas vezes, me sentir invisibilizada por uma sociedade que, embora fundamente seus preceitos na unidade composta por pai, mãe e filhos, não valorize o digníssimo trabalho que é ser “do lar”.
Não sei se terei tempo de aprender tudo o que preciso para chegar perto de ser a mãe que algum dia essa criança venha a se orgulhar. Tenho um longo caminho pela frente porque ser mãe agrega uma responsabilidade além da concepção e eu estou incerta acerca da minha habilidade.
A maternidade, aquela ambição distante, está ao passo de um teste. Um teste de farmácia. Vamos com calma. Por enquanto, apesar de assustadora, apetece-me a ilusão. Depois, o hemograma e o protocolo com a ginecologista, então a conversa decisiva que vai requerer de mim muita serenidade, visto que não poderei prever as reações que sobrevirão.
Nós nunca mais conversamos depois daquela vez. Talvez ele não tenha me dado seu coração, contudo, enquanto brincava de me amar, entregou até mais do que pretendia, um pedaço seu, tão meu quanto do mundo, uma linha especial da nossa história secreta, a extensão da amizade.
Apesar de não esconder a minha preferência por uma menina, adoraria um garotinho, o meu Eduardo. Sempre disse que se tivesse um filho, ele se chamaria Eduardo, o meu Edu. Se fosse garotinha, a lista era extensa: Patrícia, Fabiana, Valéria, Letícia, Jade, Soraya, Samantha, Helena, Cecília, Jaqueline. 
Ser mãe, porém, é mais do que se basear no sexo do bebê para preparar o enxoval. O nome se faz uma escolha bastante difícil porque é um punhado da personalidade, imprime a particularidade, faz a diferença, sim. Espero que minha criança saiba que, independentemente do nome escolhido, tinha um significado especial, não foi imitação.
No Natal a barriga já estará maior, será impossível disfarçar. Pelas contas, nascerá entre fevereiro e março, não passará disso.
Entra setembro, vem o frio na barriga. E faz frio lá fora. E chove. E ainda é o meu segredo. E é o motivo que todas as noites me tira o sono, me faz chorar de medo. Mamãe será avó, minha irmã a madrinha, ele o pai, aquele que provavelmente vai passar a vida sem saber que gerou esse fruto. Nem mesmo o mundo.
Hoje foi o fim do meu.
Despertei por intermédio de lancinantes contrações no baixo ventre. Tive dificuldades para me levantar da cama. Não havia ninguém em casa. A vida se esvaía debaixo do chuveiro, enquanto eu me sentava no chão e me abraçava enquanto a água quente caía e se misturava com as lágrimas. Cada fagulha de dor me rasgava de um extremo a outro, a efêmera dádiva se desgarrava. 
Nem Eduardo, nem Soraya. Apenas lágrimas, a certeza de que meu luto silencioso doerá por muito tempo, porque se trata de uma ferida arreganhada. Senti-me tão medrosa quanto aquela criança que queria dormir na cama dos pais quando chovia muito forte, desejei acordar para não sentir raiva do meu próprio vazio.
Ninguém tomou conhecimento, ninguém chorou por esse sonho que se foi. Apenas eu sei a falta que me faz alguém que eu nem sequer conheci, mas amei como se ele tivesse passado a vida inteira ao meu lado. Essa porção de tempo em que prevaleceu a ilusão foi a minha sede de misericórdia. Quis mais do que nunca mais voltar a escrever, não facilitar nem dificultar o processo de cicatrização.
Mamãe nunca será avó. Continuo sem saber qual é o truque especial que ela utiliza para que seu feijão tenha um tempero único. Ainda compro iogurtes e toda matéria de guloseimas só para mim mesma e flerto com bichinhos de pelúcia. Ainda me tranco no quarto quando preciso de silêncio. Não basta me calar, a angústia pulsante me atormenta.
E hoje, exatamente hoje, acordei chorando essa lembrança amarga. E preciso da solidão, de encontrar consolo no amanhã, que um dia esse sonho não será segredo nem será requintado pelo medo, será o fruto de um verdadeiro amor, pois, afinal, entreguei-me a alguém que apesar de grande, ainda brinca e, pior, com os sentimentos dos outros.
Brinca de amor. Brinca de fazer as pessoas se sentirem importantes, especiais e queridas para depois some. Brinca sem noção de que um dia poderá ser o brinquedo, no entanto, não me parece se importar com a colheita, pois está semeando tantas amarguras que não poderá se queixar dos espinhos mais tarde.
Por alguns instantes, quando estávamos juntos, eu realmente pensei que seria a sua princesa, a sua escolhida, que eu não seria apenas mais uma que ele ludibriou com aquela falsa sensação de proteção que me deixou tão vulnerável, tão dependente dele, dessa ilusão, dessa confirmação de que fiz o meu “achado”.
Por alguns instantes, eu o entreguei meu coração. De corpo presente, eu fui totalmente eu. E hoje o que tenho de mim não serve nem para mais nada senão chorar até esgotar todo o estoque de lágrimas, porque é o que pede essa ferida aberta, para chorar e sinta na carne, porém não aceite que acabou assim.
Não fui mãe de Eduardo nem de Soraya. Continuo dolorida como se aquele dia se repetisse na memória até as imagens irem sumindo, sumindo, sumindo. A dor de ser (quase) mãe poderá sarar com o tempo, sem o beijo da (quase) vovó no joelho machucado, sem colo nem chamego, quem sabe clemência do tempo que um dia me devolva pelo menos uma parte da alegria que não sinto mais. Que fosse alegria de mentira, já não me importa.
Aquela que segura um pequeno bebê nos braços tem vontade de protegê-lo da maldade do mundo, de não o deixar crescer, de ser sempre a sua heroína, contudo o bebezinho cresce e o mundo termina de educá-lo. A mãe oferece seu ombro, mas sabe que sua eterna criança agora é uma mulher e precisa andar sozinha, aprender com a vida. Conselhos são bons, são, entretanto, aquela menininha que brincava de boneca e já esteve com uma semente de maçã no ventre, um quase bebê, um quase sonho, o fruto de um quase amor.

Curitiba, 25 de novembro de 2015

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