As cicatrizes




A simples ação de fazer login naquele aplicativo remetia ao ato desmedido de embriagar-se de veneno à medida que o feed mostrava as atualizações. Cada linha lida insuflava a torrente de lágrimas, que molhavam as costas da mão, a tela do celular, a visão, mais facas imaginárias terminavam de estraçalhá-la, ateando fogo àquela alegria de menina. 

Letícia tinha consciência de jamais se tornar unanimidade, tampouco possuía tal presunção, mas o nível de agressividade daqueles comentários estavam muito distantes do que poderíamos entender como críticas construtivas, nada disso. Pessoas covardes, escondidas atrás de avatares, expunham naquelas ofensas a verdadeira face delas. Em uma analogia cirúrgica: eles despejavam os próprios sacos de lixo pútridos no quintal de Lelê e acusavam-na de ser a relaxada, todavia, aquelas opiniões eram problemas dos próprios odiadores.

Por outro lado, se o engajamento era negativo a ponto de ser atacada incessantemente e fazer o que amava perder o encanto, Letícia refletia nas longas noites tomadas de pânico e desgosto, se não foi deveras presunçosa por acreditar ser escritora, se suas ideias eram tão massacradas e incomodavam. Antes era tão fácil ter ideias aleatórias em qualquer hora e lugar e tomar nota delas, rir sozinha com as cenas que se passavam na cabeça, imaginar a trilha sonora perfeita para ambientar histórias de amor, lugares, sentimentos, dedicar-se por horas, como se pudesse deixar o próprio corpo para habitar num mundinho bastante peculiar, criado e idealizado nos mínimos detalhes, acalentado, para onde costumava fugir sempre que necessitava se reenergizar.

Conselhos sempre foram bem-vindos, mas frases de efeito demonstravam certo desprezo pelo drama de Letícia. Essa fronteira entre o real e o virtual possuem um tênue limite, porém não dispõem de um botão para separar um do outro, nem os dos dispositivos têm sido bem-sucedidos nesse quesito. Os insultos escritos magoam, a intenção calculada e escancarada que estragam um dia, transformam o riso em pranto e partem o coração e convencem quem os lê a duvidar da realidade, de si, do próprio valor, valendo-se do “anonimato” ou em alguns casos até invertendo a situação e fantasiando uma loucura sem escrúpulos para posar de vítima, impondo, assim, o silêncio de quem sofre. Apesar de ser uma prática espúria, não é diferente daquelas pessoas na escola que teimam em perseguir um alvo — pelos mais variados pretextos — e fazer as maldades quando não há nenhum adulto por perto porque às vezes contam com uma plateia impotente, conivente, o que nos faria adentrar em um território espinhoso acerca do papel dos observadores, alongando uma proposição já problemática. 

Ignorada, a escrita era a expressão em um mundo que nunca foi gentil com Letícia. Se nunca havia um lugar onde sentir-se acolhida, as palavras o construíam e lembravam-na de criar uma ponte, para receber pessoas que também sobravam na hora de fazer trabalho em grupo, para integrar algum time na aula de Educação Física, passar o intervalo na biblioteca ou em algum canto, esperando ser invisível aos olhos dos odiadores. 

Do portão para fora, aos fins de semana e no período de férias, era a Letícia que os pais e demais familiares conheciam, a jovem esperta, sonhadora, com uma forte tendência a se depreciar e não enxergar todo o potencial que possuía, escondendo-o para evitar “incomodar”. Até mesmo desconhecidos reparavam no brilho que ela teimava em encobrir, nos elogios recebidos com certa desconfiança, questionando se eram sinceros ou apenas “educados”.

O único momento em que a dor não a castigava era durante o sono; se pudesse, dormiria por longas horas consecutivas, para não pensar no sonho que perdeu, para não chorar tentando se lembrar daqueles tempos onde não dimensionava o tamanho do ódio que pessoas sentiam pela existência dela, pelo ressentimento incrustado naqueles ataques sistemáticos, pura emboscada para ela reagir e os agressores utilizarem recortes de instantes para terminar o massacre virtual, sendo que visitas e curtidas não necessariamente asseguram talento e qualidade. 

Se a habilidade dela ainda é um diamante bruto à espera de lapidação, as baboseiras deles resumem-se numa falsificação grosseira, até porque sobrevivem disso mesmo, de imitações, sem se prestarem a uma autocrítica, eles são patéticos e merecem a lata de lixo da história.

Curitiba, 13 de setembro de 2024.



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