O que não me matou, me fez mulher

 

Folhas rasgadas preenchiam a sacola de plástico até que a mesma não suportasse a quantidade de dor ali colocada. Caíam lágrimas. Fazia frio. Não poderia acender uma fogueira em um apartamento, mas seria uma catarse digna. Porque a limpeza também era mental e espiritual. 

Os papéis que serviram de confessionário apenas tomavam nota de uma história que, embora tenha sido triste, já foi escrita no livro da vida. No entanto, as memórias confusas e a autopunição muitas vezes frearam aquele grito guardado bem na garganta para que ele não me atordoasse mais.

Fechei duas sacolas. Não pude apagar os passos trôpegos da alma angustiada, mas me desfiz daquilo que não pretendia ler, até porque, dessa má experiência, restaram feridas. Diversas. A lição foi aprendida com base num sofrimento sobre-humano causado acima de tudo por alguém que poderia tê-lo evitado se lhe sobrasse um tiquinho de compaixão, nem precisava ser uma dose extraordinária, com a condição de que não destruísse a vida de alguém que não merecia.

 A impressão mais convincente é a de que meu coração foi covardemente estraçalhado com a pureza. Padecendo a uma espera interminável, um abismo de loucura e confusão, a doçura de outrora se transformou num azedume que contaminou os versos e levou embora também o sagrado sono. As noites eram longas, tortuosas e mais cansativas ainda pelo peso dos ombros que se externava no prazer pela dor.

 Se meus olhos vinham sendo incapazes de aceitar a realidade, os olhos de quem ainda estava por perto identificavam uma mudança triste e drástica em mim. Em questão de tempos. Com os outros, fui ampliando a distância até que chegou uma noite em que estava chorando no chão, completamente sozinha.

 A tal da ficha caindo como uma ligação que não chegou a ser completada. Caía ali comigo em pedaços, descobrindo que a sabedoria dos mais velhos era infalível. Ele não veio para ficar, só queria brincar e fez parecer que era amor no início para que eu me aproximasse e nele confiasse. Todavia, quando teve oportunidades de demonstrar esmero e cavalheirismo, sua extrema arrogância passou por cima da minha vontade porque a dele contava mais do que a minha.

 Aquilo não era nada saudável. Não era amor. Eu não era mais eu.

 As memórias, ainda acorrentadas ao extremo choque, ambicionavam enxergar o lado bom dele. Da situação, sim. Porque, em meio às ruínas, enxerguei um vaga-lume. Os sonhos que quase deixei para trás estão adormecidos, ainda são meus. 

Nunca precisei dele para sonhar ou mesmo amar. Todo amor do mundo já reside em meu peito. Amo o amor. Ele, com todo o respeito, foi apenas um idiota machista que tinha de aparecer no meu caminho para que, através da dor, valorizasse a minha vida do jeito que ela é.

Hoje já não faço questão nenhuma de ter notícias, de sofrer por não ser o bastante, porque poderia ser a diva mais incrível, a povoar o imaginário de outros homens, ele me machucaria do mesmo jeito. Entretanto, agora gosto muito mais de mim e não me sujeitaria a ser apenas um brinquedinho nas mãos de quem não sabe nem sequer respeitar uma mulher.

Não desejo a nenhuma o que passei. Falo de coração aberto que o inferno me concedeu mais empatia ainda pelas minhas amigas e espero que todas sejam felizes e amadas, não quero que elas passem por nem ¼ do que vivi há um ano. Nem as minhas bullies, nem ninguém. Nenhuma mulher no mundo merece ser tratada como lixo.

Não creio que seja pretensioso da minha parte aceitar que mereço mais do que migalhas. Nunca ouvi dizer que restos saciavam a fome. Por aceitá-los, quase morri de coração partido enquanto quem o partiu ria das minhas lágrimas ao longe, me torturando de propósito com a ausência e mais ainda com a presença porque quando vinha não media esforços para me magoar. Tão covarde, brincava no anonimato, fingindo ser poeta, sentindo prazer com a minha degradação emocional. Imaturo e iludido, distante de ser um exemplo de decência e moral.

Pelo menos, se não posso rebobinar o passado para nunca tê-lo conhecido, não carrego a culpa de ignorar o não de uma moça e ir embora como se nada tivesse acontecido. Levando as sacolas para o lixo, apesar de ainda me sentir suja e culpada, penso no alívio que me trouxe o definitivo afastamento. Que com certeza o vacilo dele vai ser a alegria de outro. 

Tenho convicção de que pelas linhas tortas o meu destino vai me levar até os braços daquele amor verdadeiro que vai me tratar com respeito, dignidade, respeitar sempre a minha vontade, se entregando por inteiro e vindo para ficar, porque um amor de verdade é soma de alegrias, multiplicação de prazer e progresso mútuo.

Há páginas em branco, um caderno no colo de quem se senta com as pernas cruzadas na cama ou no gramado de algum parque, de alguém a quem ele não tirou a fé. O que não me matou me fez mulher.

 

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