Me beija?



Sentadas ao lado uma da outra na mesma praia onde nos conhecemos alguns anos atrás, dialogando sem assuntos proibidos, estávamos nós duas com os corações em descompasso, cientes de que a amizade é uma das inúmeras formas de amar, o elo entre a pureza de intenções e a nobreza de uma entrega abnegada ao desejo. Uma linha tênue separada pela iniciativa, pouco importando quem a tome.
— Ei — chamou ela —, posso... segurar na sua mão?
— Pode, ué!
Os dedos suados das mãos se entrelaçaram, os olhos úmidos se demoraram um no outro, o finalmente de todos os finalmentes.
— Eu posso te beijar? — quis saber ela, tirando de perto dos meus olhos uma mecha rebelde do meu cabelo, colocando-a atrás da orelha.
Dei de ombros.
— Posso?
— É claro que pode!
— Eu quero que tudo seja no seu tempo, lembra?
— E eu estou muito afim de te beijar, lembra?
— Mas eu falo por mim, esse beijo tem que ser consentido, eu não posso simplesmente te coagir a me beijar porque... eu... eu... eu te amo... e quem ama sempre pondera o querer do outro, nunca passa por cima dele. Sendo assim, eu preciso saber se você quer mesmo me beijar, se você também sente o mesmo por mim, se pra você não vai gerar algum tipo de desconforto...
Aquiesci, pensando que anos antes um rapaz roubou o meu consentimento. Meu “não” foi ignorado com uma veemência assustadora e estraçalhou minha inocência, minha confiança, minha dignidade. Tive de fazer daquilo o meu segredo porque naqueles tempos eu duvidava muito de que algum dia poderia abrir o meu coração com alguém sem receio de julgamentos, sem que tentassem infligir em mim uma culpa que não me pertencia, portanto atrevo-me a cutucar a ferida mais uma vez e dizer que muitas pessoas de formas diferentes ao longo da vida me coagiram para terem suas vontades atendidas e que eu, por medo ou simplesmente fraqueza, sucumbi.
Uma lágrima rolou em resposta àquela torrente de emoções que desaguava em mim e ela enxugou meu pranto com os lábios, beijando meus olhos de jabuticaba, repetindo o quanto eles eram lindos, o quanto ela os amava, que cada centímetro meu era estimado pela sua pessoa, que só faltava o gosto do meu beijo para consumar toda e qualquer dúvida que por ora permanecesse.
— Então cala a boca e me beija logo! — rosnei, brincalhona e ao mesmo tempo ansiosa.
— Me lembrei logo daquela comunidade do Orkut... — riu ela.
Os lábios dela colaram nos meus e todas as batidas do meu coração corresponderam à animação. Finalmente minha alma aportou em meu corpo e eu me senti leve como uma brisa de verão, livre como uma criança que corre na praia sem reprimendas. Eis o meu clichê. O meu beijo de amor.
— E aí? — quis saber ela.
— Se eu vivesse só por mais um dia morreria feliz. Se eu vivesse só mais um dia não pediria mais nada além de um beijo seu, então... me beija de novo?

O amor não é binário e óbvio, não se prende a gêneros, é apenas...amor.


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