RPN | CHORA MAIS, CASAL SEBOSO/FLAMENGO CAMPEÃO
O Balanço
Curitiba, 31 de julho de 2017.
As pontas dos dedos alcançam as grades do
balanço a fim de saudarem o velho amigo. Às vezes passei por ali e de longe o
vi, sem tempo de parar pela última vez. A vida adulta transcorre com pressa,
todavia trata-se de uma ocasião especial. Não existe ninguém ao meu lado para
vomitar imposições a respeito da minha conduta e, para ser honesta, aprecio
sobremaneira essa pequena liberdade que o destino me concede.
Parado no mesmo lugar, lá está ele, vazio em
par de igualdade comigo ao rememorar nosso último encontro, eu devia ser menina
ainda, tenho plena convicção. O solado do tênis está a riscar a areia. Não sei
precisamente que horas são, apenas que é dia porque o sol aparece por entre as
nuvens como se olhasse por mim e por todos aqueles que têm uma história que
ninguém mais sabe, trancada no peito junto com uma sucessão de transformações
sentidas ao redor.
Antes o campo era verde e a casas todas
coloridas com seus telhados alaranjados, as crianças se amontoavam para brincar
na rua, tudo tinha gosto de sorvete. As crianças cresceram, os tratores
atropelaram todas aquelas casinhas lúdicas, uma por uma e em seu lugar são
erguidas recriações claustrofóbicas de paraísos artificiais que por vezes
turvam a visão, tentam inutilmente tocar o céu como se fossem uma prece. Todos
têm a cor da melancolia, o insuportável cinzento da poluição que intoxica o
consumismo. Este pequeno espaço é tudo que sobrou de uma era, todavia os olhos
da ganância nunca se contentam, aqueles que ascendem ao topo aspiram; se findam
em troféus banhados a bronze e estanho, menções honrosas e associações tão
desprezíveis quanto aquele sorriso de quem ferrou o outro para estar onde está,
mas dissimula a surpresa envolta do óbvio.
Há ferrugem por entre as correntes desse
balanço, o assento de madeira padeceu aos efeitos do tempo e me abriga tão
gentilmente que todo o resto se torna irrelevante.
Eu não sou a minha idade. Eu não sou o meu
currículo. Eu não sou uma foto tratada no Instagram.
Eu não sou o meu número de seguidores. Eu não sou o que o mundo tenta me
convencer.
Eu sou bem-vinda em algum lugar. Exatamente
aqui.
Eu e meu tênis vermelho. Eu e meus sonhos
loucos. Eu e minhas músicas “fora de moda”. Eu e minha esquisitice. Eu e o meu
extenso currículo de desilusões. Eu e a minha luta quase quixotesca para que
não suguem o que ainda resta de esperança. Eu e a minha mania de esperar por
quem não volta mais, mirando o horizonte em volta como se alguém fosse se
sentar ao meu lado. Eu e a minha vontade de voar.
Neste instante delego ao silêncio que se faz
à minha volta que me conduza porque não me sinto uma alma perdida vagando por
um mundo sujo e injusto. Uma fagulha da infância persiste e eu permito que essa
ilusão recrie a sensação das saudosas borboletas no estômago. Quero subir cada
vez mais e fazer de conta que meu maior terror é pegar recuperação e que o medo
não devora sistematicamente as minhas defesas.
Quando menina eu sonhava acordada com o dia
em que seria “gente grande”. Eu imaginava um conversível vermelho numa estrada
que me levaria a algum lugar. Na prática, crescer não foi tão emocionante
quanto parecia quando eu não tinha idade para me sentar no banco da frente,
dormir até mais tarde e escrever com caneta. A infância não passou de um sonho,
a adolescência decorreu num sopro...
Troquei os balanços por outras formas de
diversão e passei por eles milhares de vezes como se nunca tivesse sido
criança, a cada ano que passa e a vida me rouba as pessoas que amo, os meus
sonhos e refúgios até me deixar em frangalhos e apelar para cartelas que me
prometem algum descanso quando bem administradas. A dose excessiva me
libertaria de seguir vivendo nesse caos onde estar perdida é minha única
convicção firme.
Eu poderia me balançar até a noite cair,
imersa na ilusão de correr por entre verdejantes jardins e relembrar a
primavera que nunca mais voltou. Não sentir dor. Não sentir nada que me faça
mal. Não ver minha poesia julgada e ridicularizada por possuir a minha
formatação e desobedecer às imposições que tanto me tolhem. Todo o mundo,
a bem da verdade. E eu gosto quando o sol aquece o meu coração, quando ele
ainda parece disposto a amar mais um pouco, amar de novo, não se fechar na dor
que o endureceu.
Por isso eu me jogo de cabeça nesse
emaranhado de palavras que não se configuram em gênero algum, são meramente
confessionais, rabiscos num guardanapo que não pretendem ser comercializados e
glamurizados.
Quero balançar um pouco mais, não gostaria
de sair daqui logo agora e me descobrir outra vez obrigada a suspirar
por mais este sonho esfumaçado cujos rastros de existência se vão à medida que
os ruídos mundanos me situam e os olhos se abrem para um novo dia que apesar da
ironia, nada me traz de novo senão a sensação de que eu gostaria de ter o tempo
de volta, pelo menos o suficiente para acalentar a alma.
São apenas sonhos, todos me dirão, e eles não significam
nada, não passam de pequenos lapsos de lucidez que propiciam ao corpo
oprimido descansar e a alma, sedenta por liberdade, viajar para onde bem
entender, mesmo que tenha hora para voltar e que pouco ou quase nada possa
registrar de todas as suas magníficas experiências como turista.
Este balanço fica em algum lugar do mundo
onde não apenas minha alma vaga como se sente bem. E eu me sinto tão bem... até
que as notícias ruins do dia-a-dia me lembrem que eu destoo do politicamente
correto, não sigo modinhas e não piso nos outros para chegar ao topo, porque
embora só eu não pretendo ser mais ninguém além de mim...
Esse velho balanço afinal de contas é meu
refúgio, sentar-me nele e permitir que as boas recordações prevaleçam sobre
toda a tristeza que nem sempre é chorada, mas incomoda de qualquer modo porque
apesar do meu aparente semblante de tranquilidade por dentro eu incendeio de
vontade de voar, fazer outro trajeto, compor outros versos, não ver a vida
passar como se eu estivesse destinada a ser figurante de todas essas estrelas
de plástico que largam mão de todos os escrúpulos por aplausos.
Por mim eu não sairia desse balanço tão
cedo. É o mais perto que eu chego de voar, de me conectar com o vento, com o
infinito, com a certeza de que o existir não pode ser essa prescrição tão
superficial. Esse frio na barriga nunca vai estar postado numa rede social
porque ele é tão doce, tão meu, tão puro e se eu pudesse queria de volta todas
as flores da primavera, as cores da inocência, melodias agradáveis que toquem a
alma e não apenas lucrem.
Aos poucos o dia se faz noite e embora eu
não conte as horas porque me baseio apenas pela cor do céu, estou ciente de que
é hora de ir. Se algum dia terei o privilégio de retornar, não hei de prometer,
me valho daquele clichê "que seja o que tiver de ser" porque desse
modo não crio expectativas e não abraço a desilusão. E espero, no meu retorno,
saudar o meu velho amigo como se nunca tivéssemos nos separado.
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