Ex-poetisa (Uma carta para a inspiração)

 

Trecho do texto "Saturno em Escorpião", de novembro/2014.


Cara amiga,

Acreditei que iria me entender com você para o resto da vida. Assim eu queria que fosse: nós duas sempre juntas por causas nobres, sendo a junção perfeita de dedicação, empenho e sensibilidade. Você nunca iria para longe de mim, eu nunca te repudiaria. Estaríamos sempre de mãos dadas, brincando à toa, rindo das pessoas quadradas que não conseguem enxergar a poesia em nada, concretas demais em suas argumentações. Para você eu teria de sobra todos os minutos do mundo. Por você eu escreveria bobagens na última folha do caderno, suportaria ler os livros mais enfadonhos do mundo para melhorar o meu vocabulário e incrementar os meus mundos paralelos. Mas você tinha outros planos e eu não estava incluída neles. Agora eu duvido que faça algum sentido continuar. Porque não faz. Nunca deve ter feito.

Meu sangue é jorrado numa guerra silenciosa que consome as minhas defesas dia após dia. Os estratagemas falharam, meu escudo se rompeu. Preciso reconhecer que te perdi, que o dom foi uma ilusão adocicada para me manter viva. E agora eu também duvido de que esteja formalmente viva. Sou uma sobrevivente do meu próprio holocausto. O coturno pesado da realidade estraçalhou os meus sonhos. Eu ouvi risadas vindas de todos os cantos. Mais uma vez a minha imperfeição foi motivo de deboche. Meu refúgio foi destroçado, portanto eu não tenho para onde correr. A minha sombra me segue. O ritmo acelerado do meu coração é testemunha do medo que o futuro me traz. Seria um medo infantil se não tivesse fundamento, mas tem mais do que isso, tem o aval de uma inocência sem cor, um poema sem sabor, uma função que um dia me trouxe alguma satisfação e hoje é o meu martírio. Incrivelmente previsível. A lança afiada da rejeição atormenta. Mais uma vez eu não fui o bastante, eu desapontei todos ao meu redor, não pude dar o que eles queriam, não fui o que esperavam, não progredi nem metade do que eu idealizava.

O sorriso que lhe abro é uma farsa. E você, inspiração, abandonou-me sem sequer deixar uma carta de despedida, um único sinal que me ajudasse a digerir esse baque, essa certeza de que tudo o que fiz até então não teve valor, vai sumir como todas as pegadas dos meus pés na areia fofa e movediça, traiçoeira tal quais aqueles elogios que me envaideceram até cravarem o punhal de indiferença nas minhas costas. Todas aquelas palavras eram mentirosas, ninguém torcia por mim, eu não existia no coração de ninguém, nunca fui a alegria de ninguém, sempre fui um ombro amigo, alguém conveniente quando presente, que porém não precisava ficar. E você fez isso. Foi-se. O vento não me indicou a direção. Tenho plena certeza de que você não voltará. Fico aqui sentada nesse primeiro degrau sentindo as correntes geladas de vento destruírem a minha imunidade. A gripe pode fazer o que quiser, eu já não vejo sentido algum em respirar. Todo o meu peito dói. E dói além de qualquer descrição, qualquer referência plausível para essa carta ser compreendida. Eu nem mesmo quero. Meus olhos fervem pelas lágrimas reprimidas e não choradas. Eles se curvam, se abaixam, fazem de tudo para manterem o resto de dignidade que ali estão. Firmes. Embrenhados em milhões de palavras que queriam jorrar no céu da boca e se contentam com esse silêncio incômodo que faz desse dia mais longo do que uma noite de inverno.

Por que você se foi?

Para onde você se foi que não podia me levar consigo?

Eu poderia te escrever pelo resto da noite enumerando todos os motivos para você ficar, mas não disponho de paciência e a noite cai, ainda devagar, mas algumas estrelas tímidas estão presentes e o vazio que se escreve é mais do que uma presença sensível. Eu estou perdida e não tenho a você e nem a mim. Eu poderia ser muito melhor com você aqui comigo. Melhor do que ontem sem prometer nada para amanhã. Eu poderia rastejar por mais uma chance, só mais uma, para não dizer que sou orgulhosa.

A vaidade foi o pecado que condenou toda a pureza. Eu não soube me contentar, queria mais do que merecia e agora que não tenho nem o básico, nem mesmo o sustento para a escuridão, sei o quanto errei por esperar demais, alimentar-me do alimento mais venenoso que é a expectativa que geralmente não se cumpre, é só propaganda mal feita que não convence a quem tem certa experiência de vida. E eu, tola, às vezes infantil em minhas indagações, corri para trilhar aquele caminho que parecia mais fácil, mais atraente, caminho esse que escondia um obstáculo intransponível, a queda inevitável. Custou tão caro que nem estimo a média de juro.

Gostaria de entender as suas razões. De te ter aqui comigo de novo. E em definitivo. Eu nunca queria te perder. Você era o complemento do meu dom, o refrão que ajustava todas as cordas do meu violão mudo, daquela letra de música que eu escrevi para um sonho em especial, porque meus sonhos eram as minhas asas para sobreviver nesse mundo que não tem piedade de arrancar o pior de cada um. Sem pureza eu não irei longe. Perdida de mim, todo passo arrasta consigo o peso de dois ombros encurvados, versos pela metade e histórias sem final.

Você me faz muita falta. E isso é tudo, minha amiga. Nada pode compensar. Nada no mundo pode ferir mais do que não te ter. Sem o meu dom, eu perco os motivos para viver. Eu perdi essa luta. Não há nada a esperar.

De sua (antiga) amiga,
Poetisa do coração partido.

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