Uma ingrata espera

 

A presunção tenciona uma ideia bastante perigosa: a de agir com o entendimento de hoje se porventura me fosse concedida a dádiva de voltar ao exato ponto onde tudo se perdeu. Divagações expostas em parágrafos polidos não consolam uma alma em frangalhos, no entanto, a projeção mais benquista de caminhos refeitos aponta para um desfecho mais agradável: nunca o ter conhecido.
O bolo na garganta acumula todas as sentenças jamais proferidas, tolhendo a livre expressão, abrindo caminho para a angústia fazer morada no peito. Pensamentos intrusivos sussurram que não passo de um erro, um acidente, sem propósito algum no livro da vida, a conjunção adversativa largamente utilizada pelos covardes para desconversarem.
Os juros cobrados pela omissão foram altos.
Nossos destinos nunca estiveram traçados, portanto, a colisão entre dois universos distintos provocou uma tragédia de incalculáveis proporções. Tão logo recobrei a lucidez, os danos estruturais de palavras pronunciadas num tom baixo, mas igualmente destrutivo, foram sentidos. Estruturas sólidas desabaram, certezas ruíram, a inocência deu seu último suspiro. Vivo sob os escombros do que um dia fui.
Desfiz-me do diário daquele ano para não ser tentada a crer em insanidades, tampouco relembrar a derrocada da dignidade, a lembrança ruim me atormenta quando o outono faz sua saudação. As bolhas nos dedos são mais suportáveis em comparação a um coração partido e as marcas invisíveis do toque não consentido. A rejeição foi consequência por duvidar da realidade, quando ela era minha fonte mais segura de informação.
Agradecida pelo seu amor seria se o que vivemos assim se caracterizasse, quando não foi, se a covardia de fugir não fosse seu objetivo principal na aproximação. Oferecer-me promessas quebradas não corresponde com a atitude esperada de uma pessoa adulta, com o mínimo de empatia, que já passou (e muito) da época de brincar.
Pérfidas eram as intenções das palavras, breves e amáveis, envoltas pelo ícone de um envelope. Por detrás das teclas, entre as digitais, o desejo pulsante de saciar a fome do ego, acariciar a soberba, despejar espinhos por todo o percurso. Você não seguraria minha mão nos trechos mais excruciantes, às pressas caí em mim: teria de caminhar sozinha, sem identidade, sem dignidade, carregando nos ombros além da cruz, angústia e culpa, perguntas sem respostas.
Se cinco anos atrás eu possuísse o entendimento adquirido ao custo de tanto sofrimento, tomaria outra atitude: excluiria a mensagem após lê-la e a jogaria na caixa de spam. Responder-te foi retroceder no processo de cura, tornar a engolir as palavras mais ásperas que um ser humano pode ler/escutar.
Você nunca ouviu minha voz de verdade. Não havia pergunta a ser feita porque todas as etapas desse propósito doentio já haviam sido idealizadas antes da consumação. Quando me pronunciei, fui silenciada. Perdida em vida, restava-me contar numa carta aberta que rumos minha existência tomou depois de um ataque tão covarde. Se nesse coração envolto por camadas duras de gelo houvesse afeição, você não teria me machucado e faria uma análise de consciência acerca da sua conduta. Os caprichos do ego jamais devem sobrepujar o consentimento de quem quer que seja.
Lágrimas de crocodilo caíram do olhar lascivo, dissimulado e distante, forjadas para manipularem os estratagemas para as circunstâncias te favorecerem. Neste crime sem testemunhas, a vítima pede desculpas ao abusador, no alto da roda-gigante enguiçada, a impunidade acena. Ainda falta um ano e três meses para meu corpo ser meu por inteiro outra vez, sete anos completos sem o seu toque grosseiro, imundo e autoritário. Simbólico, que seja, qualquer consolo me serve. As chances de que eu pereça sem ver você sofrer pelo mal que me causou são grandes.
Desejar-te toda espécie de desventura não me engrandeceu como pessoa, fingir que você nunca existiu também não demonstrou eficácia, rememorar o trauma me tornou uma companhia desagradável porque lágrimas novas choram dores antigas. Tudo já foi consumado e não haverá restituição do que me foi furtado. No saldo, a maior perda, sem dúvida alguma, foi o tempo. O bem mais sagrado despendido para uma ingrata espera.


Reescrevendo a carta de 07/03/2016

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