Diferente do Padrão (versão 2016)

 


Os padrões formatam o mundo.

Os padrões orientam a disciplina da mente.
Temos o nosso próprio padrão até que as evidências apontem o contrário.
Que o nosso padrão é apenas um rascunho de uma ideia maior.
De um algoritmo impossível de cumprir.
Porque estamos inaptos.
Ainda que corramos o mundo em busca da perfeição, seremos retribuídos com dor.
O mundo é nosso dormitório em caráter provisório.
O mundo é pequeno para sonhos muito grandes.
E os sonhos, esses pobres iludidos, podem nunca ser realidade.
O palco parece estar destinado às estrelas de berço.
Porque a realidade é a mazela do homem.
É a desilusão, a inadequação, a estatística que não o contempla.
O padrão é o pêndulo concentrando toda a energia da dor no som da caixa registradora.
Outro coração parou.
Outra infância derreteu-se na pedra de crack.
Outra garota passou a retalhar o corpo para tentar ter o controle das coisas.
Outro dia se foi e as ruas continuam sendo o lamaçal dos esquecidos.
Outro dia se foi e a impunidade regozijou.
A capa da revista fez aquela menina alegre e inteligente lutar contra os próprios monstros da mente. 
Hoje ela disse para os pais que estava sem fome para não jantar, ninguém percebeu que ela chorou até dormir com o estômago fazendo barulhos, verdadeiros roncos.
Ela sente fome de ser amada.
De encontrar um motivo para se sentir viva.
Ela gostaria de reencontrar prazer nas pequenas coisas da vida.
Ela queria se encaixar aos padrões de beleza, das moças bonitas da televisão e das revistas.
Ela queria acima de tudo não chorar mais por tanto se odiar.
Por não estar nos padrões.
Dos padrões que fazem aquele garoto repudiar a cor da própria pele e procurar subterfúgios para não cair.
Do inferno da exclusão.
Do preconceito que dorme com ele desde o berço.
Das palavras amargas proferidas por cima dos ombros.
Pelas afirmações jocosas de quem magoa sem alvo.
A guerra silenciosa tem armas mais poderosas que rifles, carabinas e fuzis.
O canhão de bala cabe em uma palavra.
O efeito é devastador, uma bomba ardilosa capaz de derrubar a segurança de uma vida inteira.
Palavras matam.
Nada parece estar no lugar.
Uma estante organizada está em plena vantagem.
O ódio é o mesmo, intransferível e hereditário.
A injustiça é confundida com subversão.
Estarão todos mudos? Ou surdos diante do medo?
Estarão todos programados para não questionarem?
Ou as respostas dependem de uma reflexão mais apurada.
E se a consequência for perder a razão?
E o que se perde quando se perde a razão?
Perde-se o controle?
Perde-se, de fato, a solução?
O que se perde senão a certeza de que a razão é um rascunho, um parágrafo eternamente em revisão.
A razão que afinal de contas ninguém tem, nem os reis de pregarem lições de moral sem moral.
A definição de paraíso logo é derrubada.
A perfeição se encolhe num carma.
Inalcançável meta.
Interminável maratona.
Um teste entregue em branco.
Um teste de resistência resultando no esgotamento mental. 
E moral.
De uma causa imoral.
O padrão que inviabiliza a luta de quem precisa provar várias vezes o seu próprio valor.
As determinantes condições de sobrevivência com todas as suas discrepâncias.
Dois polos opostos separados pela discriminação.
O equilíbrio é balela, a luta pela igualdade é tratada com deboche e intolerância.
A sociedade nada mais é do que uma casa apodrecida com moradores falidos e presunçosos, existe ali uma falsa sensação de soberba.
Ainda são eles que determinam como todos devem agir.
Sentir diferente disso é opressão.
A alma está aprisionada.
Algemas imaginárias contêm a revolução.
Na mente.
Por uma consciência leve.
Não na balança, mas no balanço da existência, render frutos mais interessantes do que a frustração.
É crime ser diferente do padrão.
As pílulas tentam maquiar por dentro a dor que se reflete por fora.
Dorme-se para esquecer os problemas, acorda-se para mais uma vez fugir deles sem nunca investigar as raízes e os porquês.
Porque o medo ainda domina o querer.
Porque ser uma ovelha que busca o próprio caminho ainda é um risco muito grande a ser corrido.
Quem caminha para frente nunca mais volta para o mesmo lugar.
E neste mundo, com objetivos diferentes, todos buscam o seu lugar.
Será um lar de verdade?
Será uma casa invisível?
Será esse lar a vontade de mudar?
Será que encontrar esse lar chega perto de se comparar com a busca incessante pela paz?
Nem todas serão Cinderela.
Nem todos serão Ronaldo.
Nem todos chegarão ao final do Ensino Médio.
Nem todos sonham da mesma maneira, mas quando se sonha, será que afinal de contas, cada um se questionou se sonha por conta própria?
Ou o mundo tenta fazer parecer que assim é tudo deve ser?
Essas são apenas as divagações de alguém que desde que se entende por gente é diferente do padrão.
Não apenas a rebelde sem causa, a ovelha colorida de um rebanho computadorizado, a tal da criatura esquisita.
Talvez eu seja um pouco disso tudo.
Talvez eu ainda esteja perto de descobrir o que realmente sou, pois acima de tudo, eu tenho em mim um pouco daquela garota que se odiou por não se parecer com as mocinhas de revistas, aquela que questiona as artimanhas da sociedade, que já deixou de jantar para perder peso, que já se retalhou para matar a dor da vergonha, que já chorou noites e noites por se odiar.
Talvez eu ainda esteja prestes a encontrar o amor.
O amor por mim mesma.
O amor que a sociedade tenta me impedir de nutrir por mim mesma, inventando algoritmos sufocantes para me fazer pensar que sou um fracasso.
Mas sei que não sou.
E sei que, apesar de todos estarem fazendo de conta que são perfeitos, existem várias pessoas como eu, e é para elas o meu recado: não nos envergonhemos em sermos o que somos, pois somos o que somos.
Diferentes do Padrão.
De um jeito diferente.
Do caos, sobreviventes.
Do caos de um mundo sujo que se agarra ao “politicamente correto” para sobrepujar a revolução.
De um mundo que ainda não é o lar que almejo para a próxima geração.
Não é o meu lar.
E esse padrão que tenta a todo custo desqualificar o meu sonho, não me representa.
Esse padrão não me representa.
A capa da revista não me representa.
Quer faça sentido, quer não, sou o meu padrão.
E o meu padrão é rascunho.
Eu nunca quero ter tanta certeza das coisas.
Eu nunca quero parecer que sou a dona da razão.
Quero apenas ser livre para ser diferente do padrão.
Por hoje, para sempre.
Diferente do Padrão de corpo e alma.

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