Não será sempre assim

        


        Ela já fez as malas mentalmente um milhão de vezes, contou os trocados que guarda num potinho, pensou em embarcar num ônibus interestadual e descer no último ponto, numa localidade que nem sequer esteja no mapa, qualquer lugarejo onde possa deixar pelo caminho a inglória pecha de filha renegada e recomeçar uma história na qual enfim seja a protagonista e não uma personagem jogada ao acaso, sem função alguma senão ser sombra dos outros.

    Ela só deseja ser encontrada pelo amor. Por um amor puro, recíproco e incondicional. Que segure a sua mão e fique, reacenda o brilho no olhar, resgate o entusiasmo contagiante de viver e lhe mostre de uma vez por todas que ela não é um erro, alguém nascido por acidente, que nada de bom sabe fazer.

        Ela nunca se sentiu tão esquecida. Apesar de estar sempre presente, ninguém se importa se amanhã não acordar. Até orar tem sido difícil, a solidão a devora. O choro contido deixa sequelas, engolido porque a argumentação utilizada é a de que a dor dela não tem a menor importância. Na verdade, ninguém tem interesse em fazer parte do seu mundo.

        Arredia não por menos, já foi exposta ao ridículo, a aproximação passa pelo crivo do risco a se correr. Não é tão incomum abrir o coração e trombar com gente blasé, insensível, rasa demais para mergulhar em mares profundos.

        Os amigos não eram verdadeiros, partiram após fazerem promessas as quais nem sequer tiveram a decência de cumprir. Ser sempre aquela que mendiga amor ofende a dignidade. Foram muitos vácuos e eles dizem mais do que uma carta de duas páginas.

        Exaurida, ela já não mais implora por atenção, morre em vida enquanto a disputa por mais curtidas segue a todo pique. Dizer mais com o menor número de palavras. O que sente. Relatos de uma solitária flor ansiosa por um único gesto de amor, um pouquinho de cuidado, que apesar de ser sempre ouvinte, gostaria de ser escutada com o coração, hábito há muito tempo descompensado pela vaidade de ter a razão.

        Os trocados contados não compram a bendita passagem para perto do mar, as fronteiras estão fechadas, nas notificações ninguém lhe manda lembranças, nem sequer pergunta se está tudo bem — por pura formalidade, toda manhã se levanta para encarnar a filha rejeitada, para quem só servem as reprimendas e o ódio disfarçado de "orientações de quem lhe quer bem".

        Ela gostaria de não mais acordar, se pudesse. Desejaria sonhar para sempre, caminhar pelas estradinhas de pedra, cercada pelo infinito verde, sentir a brisa do mar, os cabelos ao vento e rir como se nunca tivesse sido machucada, ir ao encontro de um par de braços que a acariciam, a protegem do mal, a aquecem com o amor mais puro, porque os olhos que lhe sorriem não escondem o bem querer.

        O sonho sempre é interrompido na melhor parte ou então esquecido de todo ao despertar e voltar para o mundo que a julga pela aparência, pelas poucas curtidas, por desonrar as expectativas cruéis impostas sem direito a contestação.

        Ela pode fugir, ainda que sem sair do lugar, através das palavras. O mundo pode maltratá-la, mas dentro da mente, por maior que seja o medo, ele não é páreo para a esperança, ainda que frágil.

        A esperança ainda a mantém viva e sussurra que um dia ela vai acordar, abrir a janela e contemplar o mar, agradecendo por todos os entraves que a fortaleceram, pelas pessoas que partiram para que as verdadeiras chegassem e quando for ao potinho contar trocados será para saborear uma casquinha de chocolate enquanto admira as ondas quebrando.

        Não será sempre assim.

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