Meu antigo eu ficou sob os escombros

 


Lá estão as memórias, por onde quer que eu ande, por onde quer que olhe, os fantasmas das histórias pela metade, as páginas em branco padecendo aos efeitos do esquecimento. O mundo virar as costas é previsível, mas quando alguém vira as costas para si próprio, está sacramentada a morte da alma.

Sinto o coração apertadinho, o nó se formando na garganta, mas os olhos não querem se dar por vencidos, por mais que a alma esteja inundada de lágrimas acumuladas há tanto tempo que já desisti de contabilizar. Sinto o pulsar das emoções reprimidas, vejo o tempo passar e não quero fugir do que posso chamar de “destino”, não há motivos para fingir, a verdade está cada vez mais clara, sem necessidade de traduções. 

Trancar as palavras a sete chaves dentro do meu peito possibilita prolongar o sofrimento, o voto de silêncio nunca foi minha primeira opção, que as teclas em comunhão escrevam uma canção, o hino da redenção, a parte que falta para honrar as memórias e fazer às pazes com os capítulos que já foram escritos, pois no processo criativo vivido em tempo real não admite que se passe nada a limpo, erros e acertos fazem parte, ninguém nunca sabe quando será escrito o epílogo.

Sinto que extravasar palavras é meu bote de salvação e por isso mergulho com todas as forças que me restam para caminhar de novo em terra firme. O mar é longo, o medo preenche o espaço ocupado pelas águas, o corpo chega ao seu limite, mas insisto, está cada vez mais perto, persisto, respiro fundo, deixo-me levar pelas ondas revoltas, flutuo, concentro-me, resisto, se cheguei tão longe, não vejo motivo para desistir.

Lá estão as memórias, por onde quer que eu ande, por onde quer que olhe, mesmo quando fecho os olhos e não saio do lugar, elas me abraçam a ponto de me render e externar nessas ardentes lágrimas o desejo de não dizer nada e, ao mesmo tempo, escancarar o que foi silenciado porque as perguntas sem respostas e as histórias mal resolvidas não possuem solução, escrever sobre o que não posso mais mudar seria retroceder. 

Amigos, amores, conversas, momentos que não voltam mais; o poder da imaginação, a coragem para fazer acontecer, quem era antes de quebrar em mil pedaços, meu antigo eu ficou sob os escombros. 


Curitiba, 15 de fevereiro de 2023.

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