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“Eu juro que queria ser boazinha, calminha, meiga e delicada, mas não consigo.” |
6 de abril de 2002.
Mesmo com frio e chuva, o encontro foi mantido. Mamãe chiou, mas me deixou pousar na casa das meninas hoje. Fui para lá após o almoço auxiliar a Deh a se arrumar.
“Não adianta, eu não me sinto à vontade em usar blusas que deixam a barriga de fora.”, choramingou a irmã de Júlia. “Tenho essa borda de catupiri, por isso só uso calça cargo porque essas de cintura baixa mostram demais a bordinha.”
“Essa barriguinha se chama borda de catupiri? Dessa eu não sabia!”
“Minha mãe diz isso porque ela não quer que eu me sinta mal.”, explicou Andréa. “Sei que se eu fizesse abdominal e parasse de comer besteira, quem sabe perdesse a bordinha, porém não tenho toda essa disposição.”
Antes de menstruar pela primeira vez, eu era magrinha, mesmo não me sentindo assim. Entre o final da sexta e a metade da sétima, tive um estirão e saí de 1,52 para 1,63, meu busto cresceu bastante e eu até aparentava ter 15 por conta do corpão de mulher na alma de uma menininha. Peso 58 kg e tenho o “peso ideal”, segundo as especificações da OMS. Uma pena que fora dele precise aguentar piadinhas de mau gosto, constrangimentos em provadores, comparações com a fulana que come uma lata de sorvete por dia e não passa de 40 kg.
Vou enumerar as frases mais ouvidas ao longo desses dois anos:
😡Você até que é bonitinha de rosto, mas podia fechar a boca, né?
😡 Isso aí é falta de vergonha na cara.
😡 Desse jeito não vai arrumar namorado.
😡 Se continuar assim, um dia não vai passar nem da porta.
😡 Homem não gosta de mulher gorda e desleixada.
😡 Tal roupa/corte de cabelo só combina com meninas magras.
😡 Coma essa gororoba/beba esse chá, pois a comadre da amiga da sobrinha da minha vizinha tentou e emagreceu.
Deh me contou que se sente invisível porque Júlia sempre foi a beldade dos familiares de ambos os lados, na escola também, que pelo fato dela não estar dentro dos padrões, sempre é desmerecida, mesmo por pessoas que dizem amá-la.
“Não quero ir ao encontro como se estivesse indo à escola, mas não gosto de maquiagem porque me sinto estranha usando pó, base, rímel e batom.”
“Vá do jeito que você se sentir mais confortável. Se ele gosta de você, gosta do jeitinho que você é.”
Mais calma, Deh escolheu uma calça cargo preta, uma jaqueta de moletom, uma camiseta e os tênis da mesma cor, fez escova no cabelo e ponto.
“A Ju diz que se eu não quiser usar óculos o tempo todo, deveria dar mais uma chance para a lente, mas eu não me acostumo com lente, não adianta!”, contou Deh, no ônibus, posto que o shopping fica a duas quadras do colégio.
Júlia foi passar a tarde na casa do Rodrigo, ainda bem que não se interessou pelo encontro da irmã, pelo menos foi o que pensei ao encontrar ambos dividindo uma porção de batatas-fritas na praça de alimentação.
“Ponte que partiu!”, Andréa deu um tapa na testa ao reconhecê-los. “As paredes têm ouvidos, só pode.”
“Da minha boca é que não saiu!”
“Ela só pode ter ouvido pela extensão, que ódio!”, esbravejou a garota. “Será que eles não têm mais o que fazer?”
Contar ou não, eis a questão… mas nem foi preciso, demos de cara com os irmãos em frente à bilheteria do cinema. Ricardo ficou pasmo quando reconheceu Deh e eu.
“Ah, então é você a minha cunhadinha?”, ele foi o primeiro a quebrar o gelo.
“Vocês são irmãos?”, apressei-me porque Deh mal conseguia se mexer.
“Somos, infelizmente, mas eu não tenho culpa.”, disparou o último romântico.
“Qual é, pirralho? Eu nasci primeiro!”, retrucou Ricardo.
“Mas o melhor ficou por último!”
Demorou até a Deh relaxar um pouco e se soltar. Enquanto o (quase) casal caminhava na frente, Ricardo mudou da água para o vinho, parecia ter engolido uma agulha de vitrola, num misto de Pepe Le Gambá com Johnny Bravo.
“Quando meu irmão disse que você era gatinha, fiquei com um pé atrás, mas você é uma gatona!”
“Não precisa conversar comigo se não quiser, tá?”
“E por que não conversar? Vai que sai outro casal hoje?”
Rolei os olhos e fiz que não ouvi.
“Tudo bem, a gente pode ir devagar.”
Passamos na loja de departamentos para encher as cestinhas com guloseimas para filar durante o filme. Sentamos uma fileira atrás do casalzinho e eu já deixei claro que não queria mão boba.
“Nem um selinho?”
“Nem selinho, nem selão, nem nada.”
“Escuta aqui, você é sapatão?”, disparou o moleque pretensioso.
“Isso não é da sua conta!”
“Ah, para! Você pensa que é porque não tinha tido a oportunidade de conhecer um cara legal, assim como eu. Poxa, o que uma mulher tem que eu não tenho?”
“Você não tem semancol?”
“Não, só Gelol.”
Duas fileiras atrás de nós, estavam Júlia e Rodrigo, que demonstraram não levar o menor jeito para a carreira de detetives porque bem quando Deh e Rogério enfim se beijaram no escuro, os dois começaram de palhaçada.
Não demorou muito e eu senti as mãos dele subindo pelas minhas coxas e um bafo quente na orelha direita. Chocada com tamanha ousadia, não pensei duas vezes, torci o braço bobo dele e o mandei à merda, saindo da sala escura, chorando de raiva e aos tropeços.
“Levou um fora, levou um fora!”, a voz de Rodrigo ressoou por toda a sala. Foi a última coisa que ouvi.
Procurei um banco e me sentei. Não demorou muito para alguém cutucar meu ombro, torci para aquele baixote atrevido botar aquelas mãos bobas em cima de mim, senão ele teria levado umas cacetadas que fariam a D. Florinda ser amadora.
“Que foi, hein? Vaza daqui!”
“Você o colocou no devido lugar. Adorei!”
Era Deh.
“Como pode um irmão ser tão fofo e o outro tão babaca?”
Andréa se sentou ao meu lado e me abraçou.
“Você não leva desaforo para casa, gosto disso!”
“Eu juro que queria ser boazinha, calminha, meiga e delicada, mas não consigo.”
“Você é tudo isso, mas é humana, pô! E ele bem que mereceu!”
“E o Rogério?”
Ele estava na fila do MC Donald's para comprar casquinhas.
“Aceita uma casquinha?”
“Só se for de chocolate!”
Andréa apertou minhas mãos e nós nos dirigimos até onde o último romântico estava. Ele pagou a minha casquinha sem nem reclamar. Torço para essa ficada virar namoro porque ambos ficam tão fofinhos juntos.
Rogério é um bom exemplo a ilustrar aquela reflexão sobre nem todos os meninos serem iguais.
Quero saber quando Júlia e Rodrigo vão se tocar que o lance não é só amizade?
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