Arquivo Malacubaca | Guarda essa tralha (2019)

 Apesar de 2019 estar sendo marcado por grandes tragédias, a Malacubaca acertou precisamente ao estrear Os Versos Calados de Soraya logo após os festejos de Carnaval. A novela está repercutindo intensamente na web e na audiência, colocando o nome de Luciana Andrade no centro das atenções. E era exatamente isso que ela queria: ser o foco de todos os holofotes.

Não é que Soraya não esteja conquistando o público, mas a vilã Isaura, interpretada por Luciana, é a prova viva de que a atriz ainda tem muito fôlego para surpreender e encantar.

Hoje, um dos vídeos mais assistidos no canal da Lulu é o icônico protesto de 2017 contra o ex-presidente Michel Temer. Fazia tempo que ela não atualizava seu canal no YouTube, principalmente devido aos inúmeros compromissos e à polêmica participação no reality show Puxadinho do Rubão.




Luciana, trajando um biquíni fio dental verde e amarelo que reluzia sob a luz da manhã fria, ajustava a bandeira do Brasil sobre os ombros como se fosse uma capa de heroína. Ela estava determinada a transformar a rua de seu bairro em um cenário épico para sua live ao vivo no YouTube. A bandeira tremulava com o vento gelado, enquanto os gritos dela ecoavam pelas casas vizinhas, que estavam adornadas com roupas secando nos varais e cachorros espiando curiosamente pelos portões de ferro. Era um cenário típico de subúrbio, mas, para Lulu, parecia o palco de sua revolução.

— FORA TEMEEEEEEEERRRRRRRR! — berrou Luciana, erguendo os braços e girando dramaticamente, como se estivesse discursando para uma multidão imaginária. Atrás dela, o namorado Epaminondas — ou somente Papá, como ela o chamava com afeto — assistia à cena com um olhar dividido entre resignação e incredulidade. Ele usava um moletom cinza e pantufas, simbolizando perfeitamente sua vibe caseira e tranquila. 

Ao fundo, a porta da casa estava entreaberta, revelando um corredor decorado com pôsteres vintages de novelas antigas e uma cômoda entulhada de miniaturas de prêmios que Lulu dizia merecer.

— Lulu, minha querida… — começou Papá, cruzando os braços e encostando-se à porta. — Você precisa mesmo fazer isso agora? Está frio e você nem terminou o café da manhã…

Luciana virou-se para encará-lo, com as mãos na cintura e o semblante inflamado de indignação teatral.

— Meu amor, o Brasil precisa de mim! Sou a Joana D'Arc dos caminhoneiros, a voz da resistência! Como você pode querer que eu fique quieta diante de tanta injustiça?

Papá coçou a cabeça e olhou para os vizinhos, claramente se divertindo com a atuação dela. Uma senhora de casaco grosso e bobs no cabelo observava tudo da calçada, segurando um cachorro no colo, enquanto tentava conter uma risada.

— Lulu, você não acha que está exagerando um pouquinho? — insistiu Papá, ainda tentando manter a paciência.

— Exagerando? — Ela colocou a mão no peito, ofendida. — Sou uma atriz engajada, estou cumprindo minha missão de fazer a diferença no mundo! E hoje é um dia histórico, Mozão, a prisão do Temer é um marco!

Papá suspirou, percebendo que qualquer tentativa de argumentar seria inútil. Ele apontou para a câmera equilibrada em um tripé instável, cercada por sacolas plásticas dançando ao vento.

— Pelo menos termina logo a sua live… e coloca um casaco, pelo amor de Deus.

— Eu não preciso de casaco! — retrucou Luciana, jogando os cabelos para trás. — O calor da revolução me aquece!

— Não usei para o hexa, mas na vida a gente sempre arranja uma serventia para as coisas… — garantiu a atriz, animadíssima. — Deixa eu pegar minha bandeira do Brasil, minha peruca verde e amarela, porque a make já tá feita, aliás, eu tô sempre pronta para festejar e hoje é um dia especial…  

 O namorado de Luciana, que acompanhava a transmissão da Malacubaca News sentado no sofá da sala, discordou: 

 — Lulu, minha querida, não tem motivo nenhum para comemorar. 

 — Votou nele e agora não admite nem sob tortura? 

 — Eu não votei em ninguém, não voto desde 1994, desacreditei desse nosso sistema e ponto. O fato é que eu não quero ver você passando vergonha. 

 — A gente está ao vivo, eu vim pedir sua força, Mozão. Vou exercitar minha cidadania…  

 — Desliga isso… — implorou o homem, irritado. 

 — Ninguém manda em mim, não. Melhora essa cara de bunda, isso está passando ao vivo no meu canal… 

 — Que canal? 

 O homem franziu o cenho, incrédulo, pegando no controle remoto. Luciana revirou os olhos e suspirou profundamente: 

 — Eu não posso acreditar numa coisa dessas, é o fim do mundo! Você não sabe quem eu sou? 

 — Sei, você é a Lulu, meu denguinho, mas isso não está passando na Malacubaca, está? 

 — Até que deveria, mas nos tempos de hoje, quem precisa na Malacubaca quando se tem um ótimo celular e uma cuca fresquinha? Se eu não tenho meu próprio canal de televisão, eu crio. Assim é que funciona. Tenho um canal. E isso é o futuro. Lulu pensa muito à frente de seu tempo. 

 — E você grava essas coisas absurdas para jogar na internet? 

 O namorado de Luciana ficou chocado, não para menos.

Mais tarde, neste mesmo dia

Luciana, com a bandeira ainda firme nas costas e o cabelo impecavelmente preso em um coque alto, posicionou-se no centro da rua, criando seu palco particular. O vento frio balançava as sacolas que rodeavam o tripé da câmera, enquanto ela se preparava para apresentar sua obra-prima musical: Pagodão do Sarcófago

Segurando uma colher de pau como microfone, Lulu começou a cantar, intercalando passos desajeitados de samba com movimentos de pura expressão dramática.

— A polícia invadiu o sarcófago
O Drácula saiu da tumba
E recebeu voz de prisão
Despenteado e sem capa
Foi parar no camburão!

O ritmo pegava, e Lulu dava o seu melhor nos passos. Papá, agora usando uma manta para se proteger do frio, observava de longe, com as mãos nos bolsos e um sorriso quase resignado.

— Esperei o hexa,
ele não chegou
 Mas hoje meus fogos vou soltar
 Laiá laiá
 Animação por aqui não vai faltar
 Laiá laiá

A cada “laiá laiá”, Lulu gesticulava com fervor, apontando para os vizinhos que ainda observavam atônitos e divertidos. Os comentários no seu canal explodiam com emojis e frases como “Lulu 2026 é realidade!” e “Rainha do pagode e da revolução!”

— O GIGANTE ACORDOU, O GIGANTE ACORDOU! — gritava Lulu entre os versos, batendo palmas com intensidade teatral. Ela gesticulava como se estivesse convocando a audiência digital para uma marcha patriótica ao som do pagode.

Papá, finalmente se aproximando, tentou intervir: — Lulu, por favor… você já marcou sua presença, mas está muito frio… vamos para dentro, meu bem.

— Eu não posso parar agora, Mozão! — retrucou ela, com olhos brilhando de emoção. — O Brasil precisa de mim, e o meu público está esperando o gran finale!

Papá, agora visivelmente incomodado com os gritos e gestos dramáticos de Lulu, cruzou os braços e tentou mais uma vez chamar sua atenção: 

 — Lulu, meu bem, não faz sentido continuar… Está frio e você já está ao vivo há horas!

Luciana girou em direção ao namorado, com uma expressão exageradamente ferida, como se ele tivesse acabado de insultar todo o seu legado artístico. 

 — Não faz sentido? Você está dizendo que a minha luta patriótica não faz sentido? Papá, eu não posso acreditar nisso!

— Eu só estou tentando dizer que… — Papá começou, mas foi interrompido por Luciana, que jogou os braços ao céu em puro drama.

— Sabe de uma coisa? Você não me apoia! Você devia ser meu maior fã, mas nem isso você consegue fazer direito!

A bandeira tremulou atrás dela enquanto Lulu entrava na casa a passos largos, suas sandálias batendo ruidosamente no chão de madeira. Papá, exasperado, seguiu atrás, tentando acalmar a situação: 

 — Lulu, não é isso! Você sabe que eu te amo e que quero o melhor para você, mas…

— Ah, então agora quer me dar lição de moral? — disse ela, parando na porta do closet e se virando dramaticamente para encará-lo. — Muito obrigada, mas eu não preciso disso!

E assim começou o clássico “vai e vem” do casal, onde Lulu disparava declarações inflamadas e Papá tentava manter a calma, claramente sem conseguir acompanhar o ritmo da estrela em ascensão. No final, ela trancou a porta do closet e gritou: 

 — Vou dormir aqui hoje! E pode esquecer de pedir desculpas, porque eu não quero ouvir!


Dentro do closet, Lulu montava sua “fortaleza de revolução”. As roupas penduradas viraram cortinas simbólicas, enquanto uma pilha de almofadas e um tapete fofo se tornavam seu “trono”. Com a câmera do celular estrategicamente posicionada sobre uma pilha de caixas de sapato, ela iniciou outro discurso fervoroso para sua audiência: 

 — Pessoal, eu estou aqui, no meu bunker patriótico, porque as pessoas às vezes não entendem o meu propósito! Mas eu não desisto! Vou seguir lutando pelo Brasil, mesmo que incompreendida até em minha própria casa.

Do lado de fora, Papá estava encostado na parede do corredor, massageando as têmporas enquanto conversava com a empregada que segurava o celular e fazia comentários baixinho: 

 — O senhor é muito paciente, viu, seu Papá? Parece até santo…  

 — Isso porque você não viu como ela estava ontem. — Papá balançou a cabeça com um meio sorriso.

Finalmente, ele decidiu intervir. 

 — Lulu… Vamos resolver isso como adultos? Abre a porta, por favor.

— Papá! — ecoou de dentro, abafado pelas roupas. — Não adianta bater! Aqui só entra quem acredita na revolução!

Papá suspirou e se abaixou para falar com mais clareza: 

 — Lulu, minha revolução é te convencer de que esse closet não é um palácio presidencial, e que sua saúde é mais importante. Vamos tomar um chá e conversar.

A porta rangeu lentamente, revelando Lulu com uma tiara de brilhantes que pegara de uma de suas caixas. 

 — Chá? — Ela fez uma pausa, refletindo com drama. — Só se for com torradas e geleia.

Papá sorriu, percebendo haver vencido dessa vez. Ele estendeu a mão, ajudando Lulu a sair de sua “fortaleza”. 

 — Torradas e geleia, com certeza. E uma pausa para você respirar, minha Joana D'Arc do closet.

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