É uma manhã qualquer na casa dos Prado Mendes.
O sol ainda nem esquentou direito e a cozinha já cheira a achocolatado. Não porque o leite ferveu, mas porque Marcela Prado Mendes, fiel ao hábito, despejou três colheres generosas de pó no copo e esqueceu do leite. Para ela, a mistura perfeita era mais chocolate do que qualquer outra coisa. Aliás, leite era só um detalhe.
Na mesa, entre o pote de margarina aberto e a bolacha recheada meio úmida, repousava o notebook dela. Um guerreiro cansado, que tremia só de ser ligado. Com o som das ventoinhas zunindo e o MSN há muito esquecido, era pelo Facebook que Marcela se expressava — em grupos que se multiplicavam feito praga de primavera.
Na aba “Filhos Artistas — Contra o Sistema Escolar Opressor”, ela já digitava com indignação:
"Amigas, ontem foi mais um dia difícil pro meu Betinho. O Augusto está pressionando muito o pobrezinho, zombou dele. Mas ele é um talento incompreendido. Um artista. Um sonhador. Um visionário do rock. E essa sociedade escrota não entende."
Tânia do Miguel foi a primeira a comentar:
“Esse povo da escola do meu filho também não entende arte. Querem que ele vire engenheiro. Como se desenhar mangá não fosse profissão!”
Rosângela do Chiquinho completou:
“Aqui é igual. Ele canta Linkin Park no chuveiro com sentimento! O pai diz que é barulho. São todos uns frustrados.”
Marcela reagiu com três carinhas tristes, como quem lamenta uma injustiça mundial. Lá fora, os passarinhos cantavam. Aqui dentro, o arroz queimava, mas ela não notou.
Beto ainda estava jogado no sofá. Camiseta do Pica-Pau, cueca à mostra, um chinelo calçado, o outro esquecido no corredor. Na TV, TV Globinho reprisava um episódio do Bob Esponja. Ele ria alto, com a boca cheia de bolacha, quando o pai passou com o pano de chão na mão e a cara de quem já tinha varrido o quintal, trocado o saco do lixo e perdido a paciência.
— Isso é vida, Marcela? — bufou Augusto, abrindo a janela.
— Deixa o menino, Augusto. Ele é só um adolescente.
— Adolescente? Adolescente? Com a idade dele eu já tinha dois filhos para criar, já era pai de família e dava duro para sustentar essa casa!
— Os tempos eram outros, querido. Hoje em dia, tudo é diferente.
Marcela fez que não ouviu. Ainda digitava no grupo. Agora respondia à Jô Gomes (adm.):
“Minha mãe dizia que eu era muito mole, mas eu só quero que ele tenha a infância que eu não tive, sabe?”
O fogão estalou com o cheiro de arroz torrado.
Marcela sorriu. Nem notou.