Não dava pra dizer ao certo que dia era, tampouco o mês, mas uma coisa era certa: a data mais temida por Augusto havia chegado. Era aniversário de Beto. Como sempre, listinhas de presentes pregadas pela geladeira e indiretas espalhadas pela casa, disparadas na mesma velocidade com que Beto abria a boca.
— Como esse ano tá passando rápido, meu bem... — dizia Marcela, suspirando. — Daqui a pouco já é aniversário do Betinho de novo. Fico tão emocionada em pensar que meu bebezinho tá crescendo...
— Roberto já cresceu faz tempo. Só você não percebeu — retrucou Augusto, no seu tom irônico habitual.
— Lá vem você com isso de novo, Augusto. Sempre ranzinza e mal-humorado. Ainda bem que Beto não herdou esse seu gene rabugento.
— Se tivesse herdado, pelo menos seria útil à sociedade.
— Um dia você vai se arrepender de ser tão duro com nosso garoto...
Augusto bufou e lançou um olhar impaciente.
— Espero que ele não venha com exigência nenhuma. Não tenho um pingo de paciência pra comemorar aniversário de parasita. O que é que o Roberto faz pra merecer comida na mesa, hein, Marcela? E esse monte de listas? Até quando vou carregar essa cruz? Onde foi que eu errei?
— Quanta frieza, Augusto... Betinho é um vencedor... — Marcela tentou argumentar.
Augusto a encarou com um canto do olho.
— É tão difícil decidir o futuro na adolescência... Você acha mesmo justo depositar todas as esperanças num vestibular e, quando o nome não aparece no edital, aguentar piadinha de parente, a pressão do pai e tudo mais? Ele comemora porque sobreviveu a mais um ano turbulento...
— TURBULENTO? — Augusto explodiu. — Isso é uma pouca vergonha! Desde quando acordar ao meio-dia pra ver desenho e passar a tarde brisando no computador virou batalha?
Naquele momento, Beto entrou na cozinha, acabando de acordar, bocejando alto.
— Pô, pai... Acabou meu iogurte do Ben10 com floquinhos de chocolate... 'Cê' sabe que eu não sobrevivo sem isso...
Augusto cerrou os dentes. Marcela lançou-lhe um olhar de alerta. Beto, resignado, pegou um achocolatado e bolacha recheada, ainda meio sonolento.
— Pô, pai... Já viu minha listinha, né?
— NÃO. E NEM VEREI.
— Pô, pai, que é isso? Eu sou teu filho mais velho. Cadê a consideração, ae?
— Consideração devia vir de você, garoto. Tomar jeito, criar vergonha na cara. Desde quando você merece iogurte com brinquedinho, festinha de aniversário, han?
— Pô, pai... Você nunca me dá nada...
— NADA? E quem é que banca tudo o que você tem, hein?
— Nunca se lembra do meu aniversário...
Marcela abraçou o filho.
— Viu só, Augusto? Acabou de arruinar o dia do menino. Satisfeito?
— MENINO, MARCELA? ROBERTO JÁ É UM HOMEM.
— Pois é por isso mesmo que estou indo arrumar minhas malas. Saio desta casa para sempre.
— E tem meu total apoio.
Marcela caiu no choro.
— Não faça isso, Betinho. Seu pai está exaltado...
— Pare de passar a mão na cabeça dele, Marcela. Já passou da hora de arrumar as trouxas.
— Hoje você me expulsa, pai. Amanhã vai implorar pra que eu volte. Mas eu não volto, não! Sou um homem de palavra.
— Se ele for embora, eu vou também — disse Marcela.
— Prêmio Rainha do Drama 2013, os dois. Estão no caminho. Choram tão bem que quase me convencem...
— Você não pode deixar seu filho sair assim, Augusto!
— É a última vez que abro o bolso pros caprichos de Roberto. A ÚLTIMA.
— Então... quer dizer que vai ter festa?
Augusto suspirou profundamente, cansado.
— Não merecia nem uma barra de carvão. Mas enfim...
Beto correu e o abraçou.
— Valeu, paizão. O primeiro pedaço já é teu.
— Paizão uma ova. Vê se toma jeito na vida.
E lá foi a família Prado Mendes comemorar os 29 anos de Betinho no McDonald’s.
— Se eu contar a alguém que viemos até aqui... — lamentava Augusto. — Um fracasso completo como progenitor.
— Sem cara feia, Augusto. Hoje é especial.
— Pois fico sim. Quem tá bancando essa palhaçada? Sou eu, né? Pois não queira que eu finja alegria.
Sentaram-se à mesa. Beto foi direto ao balcão escolher seu brinde. Ao avistar Ronald McDonald, seus olhos brilharam. Tirou o celular.
— Fazer aniversário no MC e não tirar foto com o Ronald dá má sorte. Eu, hein...
Tentou chamar atenção do personagem, que o ignorava solenemente. Quando finalmente o cutucou, Ronald o olhou com desdém.
— Pois não, amiguinho?
— Também sou aniversariante, pô. Cadê os parabéns?
— Onde está o aniversariante? — disse, desinteressado.
— Sou eu, pô. 29 anos!
— 9?
— Vinte e nove!
— Você?
— E o que tem de errado?
— É cada louco que vejo por aí...
Ronald foi embora. Beto voltou cabisbaixo.
— E a foto, Betinho? — perguntou Marcela.
— Não tirei, mãe. Não se faz mais ídolos como antigamente...
— Tá triste?
— Não sabe como dói ser desprezado pelo seu ídolo.
— Que ídolo, criatura? — Augusto se indignou.
— O Ronald.
— Ah, por favor...
— Respeita... Tô no auge da adolescência. Tudo dói mais...
— Deus, dai-me paciência...
— Já vai começar, Augusto? Nem no aniversário do menino você dá um tempo?
— Menino? — Augusto murmurou, cruzando os braços.
— Já era...
— Não, não, filho — disse Marcela, levantando-se com ar decidido. — Luta perdida é aquela da qual se desiste.
— E o que você vai fazer? — perguntou Augusto, preocupado.
— Espere e veja...
(no próximo bloco)
O aniversário de Beto, como sempre, chegou trazendo mais dores de cabeça do que velinhas. Aos vinte e oito anos e ainda sonhando com o Ronald McDonald, o rapaz não via problema algum nisso. Para ele, cada novo ciclo era motivo de lanche no MC, e, se possível, uma fotinha com o ídolo de infância. O problema era sempre o mesmo: seu pai, Augusto, homem turrão, pão-duro e dono de uma paciência milenar — milenar porque já morreu há milênios.
— Que ídolo, Roberto? Que ídolo, criatura? — resmungava Augusto, já revirando os olhos ao ouvir a palavra "Ronald".
Mas era dois contra um. E como já dizia Marcela, esposa de Augusto e mãe de Beto, “com meu menino ninguém mexe”.
No restaurante, o trio ocupou uma mesa discreta enquanto o lugar fervilhava de famílias, bexigas estourando e nuggets sendo negociados como joias raras. Beto olhava em volta, ansioso. O sorriso dele se desfez aos poucos ao perceber que o palhaço mais famoso do mundo estava ali sim — mas ignorando solenemente sua existência. Em vez de vir até ele, Ronald caminhava até outra mesa, com um bolo colorido nas mãos e um sorrisão pronto para o garotinho que fazia sete anos.
— Meu bolo... — o menino disse, olhos brilhando. Mas seus sonhos não sabiam que estavam prestes a ser pulverizados por uma mãe em fúria.
Marcela observava a cena com olhos de águia. Quando Ronald passou perto, indiferente ao seu filho crescido e choroso, algo dentro dela estalou. Foi como se a capa da heroína se materializasse em sua alma.
— Que mundo é esse em que os ídolos desprezam seus fãs? — ela sussurrou, já se levantando da mesa.
— E o que você vai fazer, hein, mulher? — perguntou Augusto, já prevendo a tragédia.
Marcela não respondeu. Apenas marchou. Com o andar decidido de quem está prestes a virar manchete. No exato momento em que Ronald depositava o bolo na mesa da criança feliz, foi atingido por uma bicuda certeira que o lançou contra o tempo e o espaço. O bolo voou. O menino chorou.
O caos se instalou.
— Você é uma farsa, Ronald McDonald! — gritou Marcela, sacudindo a capa imaginária.
— E você é uma maluca! — respondeu Ronald, já tentando se levantar.
— Maluca não, cabelo de fogo! Eu sou mãe de família!
E o ringue estava armado.
A briga foi tão intensa que parecia cena de novela mexicana com produção de série dos Mutantes. Ronald, no fim da sua dignidade, foi arrastado pela orelha até a mesa de Beto para pedir desculpas.
— Oi, Betinho... Me desculpe... Eu... me expressei mal...
— A idade é só um detalhe — reforçou Marcela, com orgulho.
Enquanto isso, do outro lado do salão, a avó do menino que teve o bolo arruinado — conhecida como Comadre — já batia na bancada exigindo ressarcimento moral, financeiro e psicológico.
— Eu tenho um sobrinho que é advogado! — ela ameaçava. — E se ele entrar nessa causa, essa espelunca fecha!
A família inteira entrou em modo "rebelião". Pulando balcões, quebrando máquinas, lançando latões de lixo, como se o MC Donald’s fosse a Bastilha e a comadre, a nova Joana D’Arc da justiça popular.
Augusto assistia tudo em estado de choque.
— Alguém precisa acabar com essa baixaria do mais vil escalão... — murmurou.
Mas ninguém acabou. E no meio do pandemônio, Beto sorriu.
— Pô, pai... A mãe salvou meu aniversário.
E Marcela, ainda com as mãos na cintura e o queixo erguido, sentenciou:
— Com meu menino ninguém mexe.
No fundo do restaurante, entre vidraças quebradas e batatas pelo chão, o gerente chorava, Ronald tentava juntar os pedaços da fantasia, e a comadre exigia justiça com os punhos cerrados.
Na Terra do Nunca, todo aniversário tem emoção. Só não tem bolo.
(no próximo bloco)
O caos instalado na unidade do MC Donalds parecia ter saído diretamente de um filme trash dos anos 90. Os fundadores simbólicos da Terra do Nunca estavam em risco: os brutamontes da comadre destruíam o restaurante mais querido da infância do Betinho. Ele, ajoelhado no chão, observava os estragos como quem testemunha um atentado ao próprio passado:
— O parquinho não, pô... — murmurou, com os olhos marejados. — O parquinho não... Todas as boas lembranças da minha infância estão sendo destruídas. Isso é muito cruel...
Na parede, o netinho da comadre fazia arte com ketchup e mostarda, gritando alegremente enquanto apertava os tubos como se fossem pistolas coloridas. Clientes gritavam, tentavam sair, mas um dos cunhados ogros bloqueava a passagem como um porteiro da Idade da Pedra.
Marcela, aos prantos, agarrou o marido:
— Augusto, faça alguma coisa! Só você pode nos salvar...
— O mundo precisa de você — ecoou Beto, ainda no chão, teatral.
Augusto, impassível, terminou o restinho do cappuccino.
— Também não é pra tanto, Roberto...
Mas eis que, como num desenho animado, efeitos sonoros imaginários anunciaram uma transformação heroica. Augusto se levantou lentamente, sua silhueta sendo banhada por uma luz épica (pelo menos na imaginação do Beto). Em poucos passos, sacou seu temível jornal dobrado — e com um único golpe, nocauteou o marido da comadre. Era a rendição.
Enquanto isso, no campo de batalha do escorregador espiral, Beto se deparava com um dos ogros-serrotes. O brutamonte ameaçava derrubar tudo. O folgado respirou fundo, encarnando sua versão super saiyajin.
— Ei, ei, brutamonte! Pode ir largando esse serrote, mané!
O ogro debochou.
— Se situa, parasita. Vai beber Toddynho e me deixa em paz.
— Você tá mexendo com quem não deve...
— Quem tá em território inimigo é você.
— Olha o respeito pra falar de mim. Lava bem essa boca se não quiser que eu te parta em dois!
— Ah é? Então vem!
O estalo foi imediato: ao ouvir o ogro debochar de Bob Esponja, Beto arrancou seu moletom e revelou sua camiseta amarela com estampa do Bob – seu verdadeiro amuleto, mesmo que ainda não tivesse ajudado no vestibular.
Com força sobrenatural recém-adquirida, Beto conjurou um cajado imaginário (feito de tubo de papelão, talvez?) e espantou o ogro. O brutamonte fugiu covardemente, enquanto o herói abraçava, emocionado, o escorregador.
— As lembranças da infância devem ser preservadas...
As crianças o aclamaram como um messias moderno, enquanto ele beijava o pingente do Bob Esponja.
Já no centro do furacão, Marcela encontrava sua velha rival: a comadre metida a fina.
— Ah, então foi você que arruinou o aniversário do meu netinho?
— Fui eu sim. Algum problema?
— Agora você vai ver uma coisa...
— Não. Quem vai ver é você.
Sem cerimônia, Marcela pegou uma torta e a lançou com precisão cirúrgica no rosto da comadre. Esta tentou revidar, mas a torta atingiu... o policial que acabava de chegar.
Resultado: todos foram parar na delegacia.
Na delegacia, o delegado Célio Batata tentava manter a compostura, embora parecesse mais uma caricatura de baralho de boteco: gorducho, barbudo e com uma expressão entre o cansaço e o sarcasmo.
— Houve danos ao patrimônio, além de pânico e terror psicológico...
A comadre, revoltada, bateu na mesa:
— Eu quero ser ressarcida! Essa tortada foi uma ofensa à minha moral!
— Indenização, nada! — rebateu Marcela. — Quem devia pagar é você, por arruinar o aniversário do Betinho!
— Marmanjo desse tamanho devia era estar trabalhando!
— Da minha vida cuido eu, pô! — Beto respondeu, inflado de orgulho. — Sou um homem maduro e independente.
— Independente onde, Roberto? — ironizou Augusto, virando os olhos.
O delegado tentava conter a confusão, mas ninguém o ouvia. Até que... pá! Um cinzeiro na mesa. E mais outro. Até que a voz do delegado reverberou como um trovão:
— MAS SERÁ POSSÍVEL QUE EU ESTEJA NUM ZOOLÓGICO?
Silêncio.
Foi nesse momento que ele reconheceu Augusto:
— Gutão?
Augusto quase caiu da cadeira.
— Célio Batata?
Sim, eram ex-colegas de faculdade. O reencontro trouxe uma trégua ao ambiente. A comadre bufava. Tentava ostentar a neta universitária e o tal sobrinho advogado... que, aliás, não tinha passado no exame da OAB. Ou seja, era apenas bacharel.
— O Peter Pan vai pagar... — a comadre gritava, sendo arrastada com a família inteira para dentro da cela. — Ele vai pagar!
Horas depois, a família Prado Mendes saía rindo da delegacia.
— Pela primeira vez eu vi a comadre descer do salto — comentou Augusto, satisfeito.
— Bem-feito pra ela! — comemorou Marcela.
— Se eu disser que esse foi o melhor aniversário da minha vida, vocês acreditam? — perguntou Beto, equilibrando-se no meio-fio como se desfilasse numa passarela mágica. — Pura aventura, pô. Dava até pra gravar um filme...
— Que isso não se repita por uns mil anos — disse Augusto, encerrando com um suspiro.
De volta ao carro, Beto ligou o celular e foi assistir TV. Ao ver a vovó Ofélia surgindo na tela com sua bengala justiceira, sentiu um arrepio na espinha. Era como se a vida estivesse sempre pronta para um novo episódio.
Fim.
(…até o próximo drama pastelão familiar)
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