Ditados do orgulho ferido

    

    Desejamos muitas vezes aquilo que somos impedidos de possuir. Não há novidade nenhuma no preâmbulo destas considerações, apenas uma incitação para se pensar além do óbvio, do que alcunhamos “senso comum”. Certos lacrimosos clamores estão ligados ao orgulho ferido, incapazes de abandonar a infância, romantizando a lembrança criada para suportar a clareza cirúrgica da realidade.
    Realizar aquilo que desejamos estaria próximo ao nirvana, vivemos e morremos por alguns segundos de profundo êxtase. Há sérias chances da prece ser atendida e a sabedoria do tempo descortinar um elemento surpresa nesta narrativa: a realização transformar-se em uma maldição. Particularmente falando, todas essas linhas serão descartáveis para os fugitivos da verdade, pretensos de adequá-la a um contexto distorcido.
    À medida que envelhecemos e — com algum otimismo — aprendemos, nossas memórias de outros tempos nos sustentam e nos atormentam também. Arrependimentos nos igualam, estamos todos vivendo sem tutoriais a facilitar nossas próximas ações. Apegamo-nos às lembranças, essa pode ser uma plausível justificativa para buscarmos conforto na nostalgia, naquela versão de nós que tinha a faca e o queijo na mão, vários caminhos a escolher. 
    Como tudo se perdeu de repente? Será que foi tão de repente assim? Ou estávamos tão obcecados com o futuro feliz que tropeçamos no presente ou já olhávamos tanto para o passado que tombamos por conta do nosso próprio cadarço desamarrado?
    Temos a impressão de essa junção de palavras e sentimentos passar longe de ser um prólogo respeitável. Não há dedos em riste para empurrar ninguém precipício abaixo, nem tempo a perder, ele sempre está na frente, cobrando a atitude a separar vencedores de perdedores, de quem toma a iniciativa e quem observa a vida acontecer por trás das cortinas. 
    Delegar a felicidade aos cuidados de outrem não é o mesmo que pedir ajuda para resolver uma burocracia chata, não se pode nem comparar, mas há um alerta a ser feito, ser dependente nunca é uma boa forma de amar alguém. Desejar alguém que não nos corresponda resume-se aos reclames do ego insultado, ávido pela revanche, pela oportunidade de dar o troco. Não existe amor disposto a prescindir da dignidade, ninguém é tão especial assim. 
    Ama-se a ideia de amar alguém. A tal pessoa, que seja. Ama-se aquela figura presente na nossa imaginação, naquele momentinho antes de dormir que, por costume, pensamos em coisas que jamais contamos a ninguém. O beijo que encaixa, as mãos que retiram as mechas do cabelo do rosto e cobre o medo com beijos devotos, o abraço onde nos permitimos desabar.
    Escrever sobre o amor nunca foi nenhum mistério, gostamos desse encanto responsável por despertar a capacidade de fazer poesia sem ser poeta. Alguns de nós nos descobrimos por meio da arte de criar versos, outros preferem lê-los, pintá-los, bordá-los, cantá-los, coreografá-los; há também um número impreciso de pessoas que, pelas mais diversas razões, nunca sequer ousaram poetizar, além dos que um dia enxergavam possibilidades até em um guardanapo dobrado e hoje estão demasiadamente preocupados com as intermináveis demandas da vida, compartilhando com seus pares as agruras de um mundo incerto e desigual, uns trabalham sem trégua e ganham uma miséria, outros dizem e fazem besteiras, criam contendas e comem o pão dos outros, no sentido mais metafórico. Versos genéricos até a inteligência artificial cria em questão de segundos. Os mais belos estão trancafiados em rostos esquecíveis vestindo uniformes de invisibilidade em meio às produções em série.
    Na flor da mocidade, ela tinha altas expectativas sobre si mesma. Indecisão, só na hora de escolher os sabores do sorvete. Sonhava alto essa menina, sonhava com gosto, sonhava com intenção de realizar. Sabia convencer os outros a viver aqueles sonhos ao lado dela. Se o passado era uma exposição artística agridoce, o futuro haveria de ser próspero e inspirador.
    Muitos a invejavam pela determinação, porém, dar o primeiro passo não era assim tão simples, havia dentro dela uma criança receosa de ser diferente das outras, com feridas que nunca se fecharam de todo e dores projetadas na atualidade, refletidas nas amizades que não a valorizavam, nos pretendentes sem graça e sem atitude, naquela distância — facilmente possível de encurtar com uma ponte — entre a vida levada e aquela desejada.
    Determinadas características, sem um prezado equilíbrio e norteadas pelo desespero, podem implodir tudo à volta. Ninguém gosta de encarar a frustração, sejamos bem francos. Um ano “parece muita coisa” quando os fatos ainda são recentes, mas 365 dias nada deixam no lugar. Se aquela porta continua fechada, há outras por todo o corredor. 
    Uma escolha errada, uma consequência, terreno fértil para a culpa morar. Tinha um jardim de ervas-daninhas ao entorno dela, cujo sofrimento despertou egoísmo e autocomiseração, atribuído à inabilidade de aceitar a realidade e desfazer-se de alguns livros, a própria estante sentia-se sufocada pelo excesso de carga, pelo falatório noite adentro, eles também queriam saber como era o mundo fora das prateleiras, o toque gentil de outras mãos. 
    O perigo de olhar tanto para dentro está na generalização, aplica-se ao caso. Alguém não soube amá-la, ou por não ser o melhor momento, ou por não poder, ou por não saber, ou por ser covarde demais para querer aprender. Nem ela sabia, contudo, por pior que fosse o desfecho daquela história, ainda assim era melhor do que não ter nenhuma.
    A cicatriz que ficou no coração dela lembra uma bifurcação, reparemos que as ervas-daninhas foram controladas e percorremos longos corredores adornados por ipês-amarelos, manacás-da-serra, rosas, hibiscos, cerejeiras. Amar a ideia de amar custou caro, mas a vida é muito engraçada porque quando se tenta fugir do amor, ele encontra um jeito de se aproximar. Missão quase impossível, sem exageros. Há certa coerência nas colocações ditas com decoro e uma pitada de dor, sobre evitar sofrimentos desnecessários e destruir tudo que foi reconstruído com tanto sacrifício. 
    Se valer de álibi, podemos dizer que o desejo dela de controlar tudo se dá pelo medo de não saber lidar com certas mudanças, de perder a razão, o chão, a noção. Viver um novo amor implica confiar, voltar a sonhar, a dar voz à poesia adormecida dentro de si. Amar alguém, não a ideia de amar esse mesmo alguém.
    Às vezes, desejamos com ardor aquilo que não podemos ter, mas, em contrapartida, há ocasiões em que o medo pode nos impedir de enxergar uma verdade: recebemos o que precisamos. 

Curitiba, 18 de setembro de 2024.

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