Pode ser que, depois de dormir, eu encontre alguma coisa para aceitar a vida que me espera.
Capa do livro na edição brasileira (Reprodução/Editora Fósforo) |
Para a alegria de vocês, mais uma edição do Mary Recomenda está no ar, para sextar com estilo. Hoje trago uma recomendação a qual dei três estrelas porque pessoalmente não gostei muito, no entanto, o motivo de indicar ou ao menos fazer vocês considerarem dar uma oportunidade é por ser escrito por uma autora sul-coreana e ter uma narradora-personagem idosa. Não, não pensem que certa decepção tem a ver com isso porque não é, inclusive, gosto muito de ler narrativas as quais os idosos são os narradores, me ajuda cada vez mais a desenvolver empatia. Tenho outras ressalvas a fazer.
Sobre minha filha, de Kim Hye-Jin, foi publicado no país de origem em 2017. O título indica o eixo central da obra, revelando as camadas de um relacionamento conflituoso entre mãe e filha, um tema bastante presente em outras narrativas.
Minha filha nasceu do meu ser. A partir do momento em que apareceu na minha vida, ela desfrutou de cuidados e proteção incondicionais. Mas agora age como se não tivesse nada a ver comigo. Como se tivesse vindo ao mundo sozinha, como se tivesse crescido e chegado à idade adulta por conta própria. Pondera e toma decisões sozinha e só me comunica depois. Muitas vezes nem isso. Coisas que ela não me conta, mas que eu sei. Coisas que finjo não saber. Todos os dias eu vejo essas coisas engrossando um rio silencioso e sem emoção que flui entre nós.
Lidando com o fato de estar envelhecendo e relutante em aceitar a orientação sexual da única filha, esta senhora é cuidadora de idosos e trabalha em um hospital. Tive a impressão de que a protagonista está numa geração intermediária porque não é mais jovem, mas também não está na situação de Zen, uma das pacientes mais queridas e que desperta uma curiosidade muito forte por parte da nossa narradora.
Ir abrindo mão das coisas de que gostamos. Essa é a definição do verbo envelhecer.
Toda e qualquer mudança requer um grande esforço da minha parte. E, apesar de muito esforço, as mudanças são mínimas. Não importa se boas ou não. Não tenho escolha senão aceitar como parte de mim. Tudo o que resulta das minhas escolhas passa a fazer parte de mim. E o resultado dessas escolhas sou. Mas a grande maioria só percebe isso quando já é tarde demais. Lamento o tempo que perdi esticando o pescoço para bisbilhotar o passado, o futuro, tudo o que não faz parte do presente e, por isso, é inútil. Talvez esse tipo de arrependimento ou lamento caiba somente aos velhos, que já não têm muito tempo pela frente.
As pessoas se sentem incomodadas quando ouvem alguma coisa que não querem ouvir.
Minha filha, carne da minha carne, sangue do meu sangue, talvez seja a pessoa de quem eu sou mais distante. Uma pessoa que eu nunca poderei entender.
A protagonista não é uma pessoa ruim, contudo, sentia-me constantemente irritada pelo fato de ela sempre se referir àquela menina com um tom de desdém. Esse conflito se mantém durante todo o livro, então, se porventura esse tipo de narradora despertar gatilhos relacionados à LGBTfobia, recomendo o oposto, a não ler. A cultura homofóbica está bastante enraizada nas falas constantes da personagem sobre esperar que a filha arranje um homem, se case e procrie, por acreditar que somente dessa forma ela será uma mulher completa e digna de respeito. A jovem se formou na faculdade, tinha doutorado, sempre foi determinada e perseverante, sempre correu atrás da própria felicidade, lutou pelos direitos da comunidade e, pelo que se entende com esse recorte, é que o pensamento da mãe ainda é preponderante na sociedade sul-coreana. Tenho pouco — quase raro — contato com essa cultura, porém sei que a vida dos coreanos comuns não é igual ao que mostram nos doramas.
Neste livro temos uma breve percepção da forma que os idosos são tratados, a ganância dos diretores que parecem se esquecer do próprio futuro. O lucro não justifica maltratar pessoas que contribuíram para a sociedade, que merecem receber um tratamento digno até o fim. Todo paciente merece receber um tratamento decente, não apenas ser dopado até morrer.
A personagem Zen me despertou compaixão e interesse. Na juventude ela dedicou-se a causas humanitárias, mas não se sabia sobre a existência de uma possível família, se essa querida senhora tinha algum parente vivo com quem entrar em contato, enfim, o pouco que sabemos sobre o passado dela ainda ficou um pouco nebuloso. É muito difícil olhar para ela e não pensar em um parente, um conhecido, um familiar. A frieza com que as pessoas são tratadas é de cortar o coração.
Ao longo desses sete anos, espero que a situação dos idosos que residem nesses hospitais esteja melhor, que a comunidade LGBTQIA+ tenha conquistado mais direitos e que nós leitores possamos ter cada vez mais acesso a obras de autores de outras nacionalidades, outros continentes, outras raças e etnias, culturas.
Espero que vocês tenham gostado da recomendação de hoje e aproveitem para indicar livros de autores asiáticos para mim, uns para os outros, ficarei muito agradecida se os comentários forem utilizados para troca de ideias. Obrigada pela atenção, um forte abraço e a gente se vê aqui no OCDM ou na próxima edição do Mary Recomenda.
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