9º
Capítulo
Meire tinha três meias-irmãs: Agnes, Margarida e Rita, além de dois meio-irmãos, o Birinha e o Daniel, já falecidos num horroroso acidente de moto, quando eu tinha uns dois anos. Pouco me lembro deles. Ou quase nada.
Dalva, Agnes e Rita se detestavam num dia, se amavam noutro. Era uma família bastante estranha. Das tias, Margarida era a caçula e também o problema. Dizia Meire que a mãe estava pagando caro pela omissão no passado.
Maria Clara das Neves, todavia, com os esperançosos olhos, era a primogênita dentre as primas, nascida com o estigma de ser filha da porra-louca da família Neves.
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Logo após o casamento de Félix e Helena, Meire passava os domingos na casa da Vó Olívia. Naquela época, vovó fez um empréstimo para comprar materiais de construção para ajudar Tia Margarida a se endireitar na vida e, assim, olhar pelos netos mais vulneráveis.
Era uma casinha de madeira mal-acabada, com três quartos onde nove pessoas se espremiam em beliches, um banheiro, uma cozinha meia boca e a sala. O quintal era um amontoado de garrafas quebradas, bitucas de cigarro e entulhos.
Tia Margarida foi mãe aos 14 anos, mas rejeitou Clarinha e continuou farreando. Com isso, Edna, a vizinha de vovó, pegou a menininha para criar. Após tantos anos de boa vida, a progenitora desnaturada quis a primogênita de volta, levando-a para Antonina, onde morava com Josué, um septuagenário viúvo, a quem enganava na cara dura para garantir o cigarro de cada dia, enterrando o homem em empréstimos, até receber só o mínimo.
Josué passava o dia todo em casa, vendo televisão e entornando cachaça, mexia com as mocinhas que brincavam na rua. Ninguém gostava de estar ali pelas redondezas porque, quando ele preparava o chimarrão e armava a cadeira para escutar vanerão no último volume, ficava insuportável. Se o time dele perdia, saía quebrando garrafas pelos muros. Eu tinha dó do Josafá, o filho mais velho dele, que levava cada surra de sangrar as costas. Por nada.
O cachorro latiu à noite, amanheceu pisoteado. Maria Clara não perdoou Josué.
— Ele pisou em cima da cabeça da Mimi de propósito.
— Por quê? Por que ele fez isso?
— Ele disse que quando o cachorro está cavando é porque está agourando a morte dele.
— Ah, credo! Ele é maluco!
— Quando ele bebe, é um inferno aqui em casa, tenho muito medo. Você tem sorte, Tita.
— Sorte?
— Seu padrasto não bebe, não é mau e você tem pai. Você tem muita sorte. Você ainda tem um pai. Um pai. O meu pai não é vivo. Eu não o tenho aqui para me proteger. Tenho mãe e dá no mesmo que não ter.
— Ele não gosta mais de mim. Você sabe que ele me trocou pela Helena e que já tem um filho, outro filho de quem ele gosta bem mais.
— Mas você tem um pai. Sabe o que isso quer dizer? Se um dia sua mãe aprontar muito, você pode fugir para a casa do seu pai.
— Minha mãe nem sequer me deixa ir à aula sozinha.
— Sua mãe ainda se preocupa se você vai à aula. A minha nem liga se fiz o dever, desde que não falte cigarro e cachaça.
Hugo era o único filho legítimo de Margarida e Josué. Margarida tinha um filho por ano, praticamente. Cursou o primário à noite, numa turma de EJA, e engravidou, abandonando os estudos. A menina morreu esmagada enquanto dormia, três semanas depois.
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Um dia, sem querer, flagrei Josué pressionando a meia-irmã de Clarinha a beijá-lo se quisesse comprar salgadinho e picolé. A menina, que tinha uns 14 anos, se afastou e ele a insultou. Por sorte, eles não me viram.
Mais tarde, cheguei a contar para Meire o que vi, mas ela me bateu e insinuou que inventei aquela história. Se minha própria mãe não acreditava que menininhas corriam perigo perto de estranhos, tudo que me restava era manter distância do velhote tarado.
Perdi o sono pensando se Josué já ficava de gracinhas com Clarinha também, se ameaçava quebrar as costas dela com vara de marmelo caso ela contasse a verdade para alguém.
Clarinha amava cantar e não era de todo desafinada, fugia dos problemas assistindo TV e amava Piquititas, pois também era do time que amava um final feliz para aquecer o coração. A hora da novela era sagrada. Nem no prato de comida tocava. Sabia dançar e cantar todas as músicas e ensaiava até o momento em que entraria no orfanato, o que diria, quem seria o par romântico dela e que música faria o solo. Pobre coitada. Uma incurável sonhadora, sem qualquer rota com a realidade. Não com a dela. Nem com a de ninguém.
Nós também amávamos os pagodeiros do Meirellessamba, que fizeram muito sucesso ao aparecerem no Programa do Rubão. Eles eram inspirações para quem tinha um sonho tido como impossível pelo senso comum por acreditar quando todos à volta deles zombavam, desprezavam o entusiasmo, a força de vontade e achavam que eles tinham que “trabalhar de verdade”.
O sucesso deles era aquele empurrãozinho que faltava para desengavetar os sonhos mais loucos e apostar neles, uma vez que as chances de dar certo também eram de 50%.
— O Rubão ajudou os pagodeiros e também pode ajudar você, Clarinha. Se você não escrever para ele, eu irei. — Estávamos sentadas no piso de madeira da casa da Tia Margarida, quase com os rostos colados no aparelho televisor, enquanto lá no estúdio, o Meirellessamba cantava o hit do momento.
Estávamos obstinadas a escrever aquela cartinha endereçada ao rei dos domingos. Aproveitamos um feriado no qual vó Olívia estava de plantão e pediu gentilmente para que Meire cuidasse da casa e das crianças, unindo assim o útil ao agradável, pois na mochila trouxe o caderno de onde sairia a carta.
Não bastava ter boas ideias, tínhamos de convencer, contar nossa triste história para que o famoso comunicador se comovesse ao ponto de vir nos salvar. Pode soar a coisa mais sem sentido do mundo hoje em dia, mas naquela época e na nossa inocência pueril, Maria Clara e eu o enxergávamos como nosso salvador.
— O que a gente escreve aí? — Maria Clara mostrou as pitangas debaixo da blusa quando voltou a se sentar ao meu lado na cama da vovó.
— A gente tem que contar nossa história, mas ela tem que ser bem bonita.
— Nossa história não é bonita.
— Verdade, ela não é mesmo!
— Ela tem que ser triste de verdade. Por isso, quem escreve é você. Sou repetente, não sei escrever direitinho igual a você.
— Então, você tem que me ajudar. Você vai falando e eu vou escrevendo.
— Você vai escrever tudo que eu disser? — pressionou Clarinha.
— Já disse que vou!
Discussões à parte, concluímos as cartas. Escrevi uma e Maria Clara, outra. Ficaríamos de colocar no mesmo envelope, com o endereço da minha priminha, porém como Meire revistava meus pertences enquanto fazia a limpeza periódica do meu quarto, julguei mais seguro que Clarinha ficasse responsável de colocar a correspondência no correio e depois rezaríamos muito para sermos atendidas.
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Um dia, quando voltei da escola, levei uma bela surra de chicote. Primeiro apanha, depois descobre o porquê.
— Você está ficando maluca, Renata Muriel?
— Por quê, mãe? — Desviei-me da saraivada de tapas de mamãe.
— Não me diga que você tem a pachorra de me fazer essa pergunta? — Meire apertou o volante com as duas mãos e urrou.
Somente os idiotas respondem a uma pergunta com outra pergunta, me deu muita vontade de dizer, mas me contive porque amava meus dentes.
— Sabe quem ligou lá em casa?
— O papai?
— Esqueça aquele verme desnaturado! — Meire deu a partida do carro: — Não foi ele. Foi a sua tia Margarida. Muito preocupada, sabe por culpa de quem? — Ela virou-se para trás e me encarou com força.
— Aconteceu alguma coisa?
— E o que você acha, sua cínica? Mas é claro!
— O que aconteceu?
— Pensei que já soubesse.
— Juro que não sei do que a senhora está falando!
— Não jure, sua maldita! Você sabe, sim!
— Não sei. O que a tia disse?
Maria Clara não aparecia em casa já fazia quase dois dias. Vó Olívia estava preocupada, mal dormia, estava sobrevivendo à base de calmantes, enquanto Margarida, a mãe, só foi se dar conta do que aconteceu quando Josué decidiu prestar uma queixa na delegacia acerca do desaparecimento.
— A pestinha fugiu.
— Fugiu? Para onde?
— Ninguém nem sabe onde é que esse diabo foi parar, mas você deve saber.
— Eu?
— Você. — A troglodita arremedou, fazendo uma careta horrorosa. — Você, sim. Não vive de fofoquinha com ela? De alguma coisa, você sabe.
— Juro que não sei.
— Sabe, sim. Sabe e terá de falar na marra, sua cadelinha!
— Não sou cadelinha!
— Ainda não é, mas se continuar de conversinha com a Margarida 2, vai virar. Está dito: você não vê mais essa Maria Clara na vida. Não vê. Não quero mais.
— Ela é minha amiga.
— Ela não é digna de ser sua amiga.
— Eu não tenho nenhuma amiga lá na escola, mãe.
— Porque é uma imprestável, problemática. Se fosse normal, teria amigos.
Depois de algumas bofetadas delirantes, tive de confessar que Maria Clara vinha sofrendo com o assédio de Josué.
— Josué é um senhor de idade, um homem íntegro, de respeito, jamais ficaria de olho numa menina, Renata. Isso é um absurdo. Você não diz nada com nexo, garota.
— Estou falando sério, mãe! Acredite em mim, por favor!
— Menina mentirosa, atrevida, insolente.
— É sério, mãe. O Josué é um tarado.
— Diz que não gosta na sua frente. Pelas costas é outra coisa.
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Maria Clara foi encontrada no final daquele dia. Suja, perdida e faminta. Com 10 anos, para onde iria se do mundo o que conhecia era a desgraça?
Meire foi visitar a mãe e eu a acompanhei. Clarinha não queria falar comigo. Estava deitada na cama chorando tanto que chegava a soluçar. Tânia me pediu para voltar outra hora, mas decidi permanecer sentada na ponta do leito, não importando mais nada. A menina chorou, se cansou e adormeceu.
Apesar de inocente naquela época, aquele pranto de dor e desespero só indicava uma coisa: ela tinha motivos para fugir e não voltar.
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