Simplesmente Tita — 5º Capítulo



                                5º Capítulo

Três buzinadas sincronizadas na sexta-feira à tarde em frente à minha casa não podiam significar mais nada senão a chegada de Félix Linhares. Àquelas alturas, a mochila azul de alças amarelas já estava pronta e o coração palpitava de emoção.
Como parte do acordo estabelecido, papai tomava conta de mim aos finais de semana. Juntos íamos ao cinema, ao teatro de bonecos, passear nos parques e no reino encantado de uma casa azul de alvenaria, eu era a linda princesinha, o maior orgulho da vida dele.
Aqueles fins de semana compensavam o inferno dos dias letivos, representava um descanso na dor, o bálsamo para a alma solitária que não encontrava amor e proteção em parte alguma. Em contrapartida, as noites de domingo me transtornavam, embora fossem melancólicas por natureza.
Eu ainda não tinha idade suficiente para me sentar no assento do carona, mas ajustava direitinho o cinto de segurança atrás na maior expectativa. Papai sempre me recebia bem na casa dele: servia hambúrgueres, batata-frita, pizza, bolo, sorvete, me ajudava com os problemas de matemática e assistia à televisão até eu adormecer.
Frequentávamos assiduamente o parquinho, o teatro de bonecos e também o cinema. Ele sintonizava na minha estação de rádio predileta, aumentava o volume quando tocava alguma música de que eu gostava. Se o fim de semana tivesse cores específicas, seriam dos balões comprados lá no Passeio Público; se tivesse gosto, seria de algodão-doce.
Nas proximidades do meu aniversário de oito anos, pedi um cachorrinho de presente. Havia tantos peludinhos órfãos na Sociedade Protetora dos Animais e nossa casinha, embora pequena, tinha um quintal para o bichinho brincar. Meire fez de conta que não escutou nada. 
Tudo que poderia dar errado naquele ano, deu. A festinha na escola foi cancelada na última hora, Meire refutou a ideia de Elza e Eliza pousarem em nossa casa. Vovó avisou por telefone que não poderia visitar a aniversariante porque teria de trabalhar, algo compreensível, não daria tempo de sair do plantão e vir para a minha casa. Além disso, ela era justa. Desde o início do ano, guardava um dinheirinho para comprar presentinhos para todos os netos, sem fazer nenhuma distinção. 
Papai, que sempre foi o primeiro a me cumprimentar, parecia ter-se esquecido. Aquela demora toda me deixou angustiada. 
— Será que o papai se esqueceu do meu aniversário? — Perguntei à Meire enquanto ela cobria a mesa redonda da cozinha com a toalha especial utilizada apenas em aniversários e outras datas comemorativas, ou seja, raramente. 
— E eu lá sei o que se passa naquela cabeça de pudim? — Resmungou ela, raivosa. 
— É que já são quase seis da tarde e ele não me ligou... — murmurei, amuada. 
— Anda, me ajuda a colocar os pratos — ordenou mamãe, impaciente. — Daqui a pouco o Horácio chega e a gente acaba logo com essa palhaçada. 
— A senhora acha que o meu aniversário é uma palhaçada? 
— Aniversário é só um dia como qualquer outro... — rosnou ela. — Tem gente que pensa que é o centro do mundo. 
— E o cachorrinho? 
— Que cachorrinho? — Devolveu ela, com um grito. 
— A gente não pode ter um cachorrinho em casa? 
— Criança já dá um trabalho dos infernos e vem você me falar em cachorro? Que cachorro, o quê! 
— Mas eu queria tanto um... 
— Vai ficar querendo!
— Era só o que eu queria!
— E não vai ter! Ou pensa que sou boba? Você vai só passar a mãozinha na cabeça dele, mas a responsabilidade ficará toda em cima de mim. Sem chance! 
— Tomo conta dele se a senhora quiser. 
— Você pensa que nasci ontem? Tudo quanto é pirralho diz o mesmo, depois nem olha para a cara do cachorro, a responsabilidade fica toda nas costas da mãe. Não é não. Ponto final. Eu não quero mais falar sobre esse assunto, estamos entendidas? 
Assim que Horácio chegou do trabalho e tomou banho, Meire fez questão de cortar o bolo, ela e Horácio cantaram os parabéns, todos se serviram e comeram. Fim de festa. 

♏♏♏ 

Voltei a ter notícias de Félix apenas no domingo, quando mamãe, de manhã cedo, me mandou tomar banho e disse que ele passaria para me pegar depois do almoço para irmos ao Passeio Público. Apesar de ser uma notícia maravilhosa, não me foi explicado o motivo da ausência dele. 
No horário estipulado, Meire me entregou aos cuidados dele, usava uma camisa de seda azul, calça jeans de corte reto, sapatos pretos bem engraxados, cabelos penteados para trás, mais cheiroso do que de costume, encaminhou-me carinhosamente até o carro, abriu a porta do motorista, levantou o banco para que eu me aprumasse lá atrás onde estava o meu presente. 
— Como foi o seu aniversário, Tita? 
— Fiz alguma coisa que te magoou, papai? 
Félix olhou para mim com certa consternação. 
— Como disse, querida? 
— Fiz alguma coisa que te magoou? — Insisti. 
— Claro que não, meu amor! 
— Então, por que o senhor se esqueceu do meu aniversário? 
Félix, por sua vez, me perguntou se eu havia me recuperado da gripe que tive dias antes do meu aniversário e eu respondi que sim. 
— Eu te liguei, sim, meu anjo, de manhã cedinho, mas sua mãe me disse que você ainda estava adoentada e não podia falar, então te desejei melhoras e disse que esperava que você estivesse recuperada para comemorarmos no domingo — confessou-me papai. 
Aquiesci, dizendo que me sentia melhor. 
— Pronta para a surpresa que o papai preparou para você? 
— Não me diga que é um cachorrinho? 
— Não, não é um cachorrinho.
— Ah, que pena! 
— Ora, por que o desânimo? O cachorrinho pode ficar para outra ocasião. Preciso conversar bastante com a sua mãe sobre isso, pois trazer um cachorrinho para casa é uma responsabilidade.
Félix auxiliou-me a sair do carro, como de costume. Chegando ao Passeio Público, papai parou em uma barraquinha de toldo colorido e comprou três algodões-doces em vez de apenas dois. De mãos dadas, me encaminhou até um banco de madeira de ferro fundido, onde uma moça de aparência voluptuosa, ao nos reconhecer, levantou-se e veio ao nosso encontro. Até aí, tudo bem. 
— Oi, amor! — Cumprimentou Félix. 
— Oi, meu benzinho! — Retribuiu ela, recebendo das mãos dele o algodão-doce azul. 
— Você é sempre tão meigo! 
— Cheguei muito atrasado? 
— Que nada! Você é sempre tão pontual. 
E eles se beijaram. Na minha frente. 
Ao lado do casal, segurando o algodão-doce cor-de-rosa, tentava eu associar a figura daquela moça de rosto redondo, formas voluptuosas e cabelos tão negros quanto barras de carvão com a tal “surpresa” alardeada por Félix ao longo do trajeto de minha casa até o Passeio Público. 
Félix então voltou-se para fitar-me e a moça antecipou-se. 
— Então ela é a famosa Tita? — Quis saber a moça, que devia ter uns vinte e poucos anos. 
— Ela não é uma gracinha, meu amor? 
— Sem sombra de dúvida! — Exultou ela, que apertou minhas bochechas. 
Eu era a princesinha do meu pai, não ela. A única mulher da vida de Felix tinha, por lei, de ser a minha mãe. 
— Helena, ela é a Tita. 
Se tem algo que odeio é que force intimidade, ainda mais se acabou de me conhecer. 
Houve surpresa, sim, mas passou longe de ser agradável. Em um português mais claro, passei o restante da tarde suando que nem um camelo, segurando vela para o casal e caminhando atrás deles. 
Não à toa voltei para casa com um mau-humor, que despertou a atenção de Meire: 
— Anda, desembucha! Por que você está com essa cara?
— É a única que eu tenho! — Retruquei, esparramada no sofá. 
Meire relevou aquela resposta indelicada e foi mais incisiva na abordagem, caindo na gargalhada quando lhe contei acerca do passeio e de Helena. 
— Eu bem que desconfiava que aquele traste cedo ou tarde aprontaria alguma para cima de você e é muito bem-feito para você deixar de ser trouxa!

2 comentários:

  1. Gosto muito dessa fase... faz eu me lembrar quando entrei na 5ª série numa escola nova rsrs
    Ainda bem que Tita arranjou novas amizades. Espero que ela se dê bem.

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    1. Essa fase é única na vida da Tita. Sair do primário naquela escola tenebrosa, ir para um lugar onde além de ela poder ser ela mesma, começa a adquirir independência indo sozinha para a escola, interagindo com outras crianças e até recebendo um carinho equivalente ao materno por parte da prof. Daniela, sem contar que é 1998, um bom ano para ser criança. *-*
      Na escola nova sempre criamos expectativas, se seremos bem recebidos, se faremos novos amigos, se os professores serão legais ou pelo menos simpáticos...

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