No outro dia, nenhuma notícia de Francielle. As outras meninas não faziam muita questão da minha presença, então passei na biblioteca, devolvi o livro que havia concluído, peguei outro e sentei-me embaixo de uma árvore enquanto as outras crianças corriam para iniciar mais uma aventura.
Em um mundo só meu, viajava para longínquas distâncias. O tempo era contado por palavras e não minutos. Por entre as centenas de geladas prateleiras escondiam-se pequenas doses de felicidade. Lá, eu não precisava me sentir mal por nunca conseguir ser igual às outras menininhas porque, turista de tantos mundos paralelos, minha presença era sempre bem-vinda.
De palavra em palavra, o coração se preenchia com a beleza que os olhos recriavam. Lá a solidão não me encontrava. Eu tinha um lar. Vários. Sorria, chorava, aprendia.
A imaginação da criança era a chave certa para um portal de um mundo novo, admirável. E quem via um livro fechado não entendia por essa perspectiva, não sonhava, não sabia o quanto as palavras significavam.
Palavras costumam ser munições na boca de quem não sabe usá-las.
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Quando o sinal do quarto dia tocou, encontrei-me com João e ele acenou para mim, aproximando-se fisicamente:
― Tudo bem com você, tampinha?
― Não tem nenhuma tampinha aqui, não. Qual é?
― Tudo bem, tampinha ― João recuou, provocando a tampinha. ― Não está mais aqui quem caçoou da tampinha.
— Vai ver se estou na esquina, vai.
— Eita, tampinha braba. — João tentou bagunçar o meu cabelo e eu me desviei a tempo.
― Ei, a Fran está doente? Ela não aparece na escola faz dias… está tudo bem com ela?
― É o seguinte, Tita, eu tenho uma coisa para te contar, mas você tem que prometer que não chora!
― Por quê?
― É que a Fran saiu da escola ― disse ele, parecendo chateado por mim.
― Ela voltou para Tomazina.
Meus olhos deviam estar cheios d'água, pois João se sentiu culpado por dar a notícia.
― Me desculpa! Eu não queria te fazer chorar! ― Uma das mãos de João pousou sobre o meu ombro e eu dei um passo para trás, ele assentiu com a cabeça e partiu.
Eu arfava de desespero, o chão se abriu e ruiu sobre os meus pés. Desolada, esbarrei na Prof.ª Daniela, com quem teria a quarta aula naquele dia e ela notou que eu não estava nada bem.
― O que houve com você, meu anjo?
Eu chorava tanto que não conseguia nem responder. Mariana Franco só pensava em garotos, Mariana Oliveira era legal desde que não falasse em religião e Juliana era estranha, aquele tipo que muda de opinião como se troca de roupa. Francielle era a única do grupo com quem eu possuía afinidades.
Daniela, condoída, abraçou-me sem pensar duas vezes, sendo correspondida.
― Vamos conversar, Tita… vem comigo! ― Ela pegou-me pela mão e levou-me para conversar no pátio.
― Me conta tudo direitinho o que aconteceu.
Meneei a cabeça, soluçando.
― Sua amiguinha foi embora, não foi?
― É... Foi...
― E você não conseguiu fazer outras amigas, não é?
― Não... E agora eu não vou mais ter outra amiga.
― Como não?
― A Fran saiu da escola. Agora eu não vou mais ter com quem conversar. ― Solucei com a cabeça baixa.
― Não é verdade!
Daniela afagou a minha cabeça enquanto eu desabafava. Pela primeira vez, uma professora atrasava a aula por se importar de verdade com o motivo que me fazia chorar. Ela de fato me escutou, me acolheu e compreendeu, ainda que não pudesse trazer Francielle de volta.
― Ei! Por que você não dá uma chance às outras meninas? Elas também estão se adaptando ao colégio e com certeza vão querer conversar com você. Por que não tenta?
― E se elas não quiserem falar comigo?
― Pelo menos você tentou ― simplificou Daniela. ― E o fato de você ser amiga das outras meninas não quer dizer que você não possa ser amiga da Fran.
― Ela já foi embora, não volta mais.
― Quando duas pessoas são amigas de verdade, não precisam estar perto uma da outra o tempo inteiro para prevalecer o sentimento de respeito, esmero, compaixão e companheirismo. A presença que faz a diferença é aquela que aquece o coração e independe da distância, o que em outras palavras quer dizer que não é só porque a Fran foi embora que vocês deixarão de ser amigas. Já pensou em se corresponder com ela via cartas? Você tem o endereço dela? Se não tem, pode descobrir.
― Acho que o João deve saber. Então converse com ele e peça o endereço dela, ele deve saber. Todas as pessoas gostam muito de serem lembradas e é sempre ótimo receber uma carta. Já pensou nisso?
― Não.
― Que tal você pedir ao João o endereço da sua amiguinha, escrever uma cartinha bem bonita e colocar no correio? Se você não tiver como colocar a cartinha no correio, eu posso colocar para você.
― Preciso te pagar alguma coisa?
― Se você voltar a abrir um sorriso bem grandão, não precisa me pagar nada.
― Um sorriso?
― Você me promete que abre um sorriso bem bonito?
Daniela pediu-me algo que a vida cobraria de mim dali por diante, voltar a sorrir mesmo quando a alma chorava, porém nada voltaria a ser como antes, continuar a caminhar ainda que os trechos estivessem nebulosos.
Quando me acalmei e lavei o rosto, ela surpreendeu-me com essa:
― Ei, Tita! Você não pode dizer que está sozinha!
Virei-me para observá-la naquele corredor coberto por um toldo azul:
― Sou sua amiga, não sabia? ― Daniela abriu um sorriso largo e me ofereceu outro abraço me encaminhando para dentro da sala, prometendo que eu sempre poderia contar com ela.
A título de curiosidade, João transcreveu-me o endereço de Francielle em Tomazina e a professora Daniela cumpriu o que prometeu, pois, quinze dias depois, recebi a primeira carta da minha vida e a emoção, meus caros, não cabia no coração, transbordou pelos olhos.
Francielle mandou-me algumas fotos de Tomazina e me contou que estava muito feliz por voltar para a antiga escola, prometendo que quando fosse visitar a família do João, queria muito me ver. As cartas poderiam demorar a chegar, mas, quando eu as lia, meu dia se tornava muito melhor.
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