Se papai escolheu Helena, mesmo discordando, tive de me habituar ao vazio, ao fato de que tudo aquilo que vivemos antes era uma lembrança que se tornaria distante à medida que o tempo passasse.
Horácio era gremista de família. Quando passavam os jogos do time dele na televisão, dava um jeitinho de assistir, senão apelava para o rádio. Foi daquela forma que nós nos aproximamos mais porque o futebol para ele era o Chaves para mim. Conversávamos bastante e a hora passava, tanto é que quando os torneios acabaram, já fazia contagem regressiva para a edição seguinte.
Eu adorava ver novelas. Tudo sempre terminava bem no final. As mocinhas mirins terminavam fazendo shows para milhares de pessoas, com amigas, namoradinho e superavam os traumas. As madrastas feias e perversas nunca tinham finais felizes, a menos que se redimissem e estivessem dispostas a mudar.
♏♏♏
Elza, Eliza e eu continuamos formando o trio das renegadas. Gosto dos sucessos do É o Tchan daquela época porque me lembro da gente dançando e rindo no recreio. Aos moralistas de plantão, nossa alegria era brincar, ouvir a música, pois, para ser bem franca, eu nem entendia a conotação da letra; a maldade está sempre no coração de quem a encontra, vão por mim.
Eu curtia o que chamam de tuch-tuch, aquele som que vinha da Europa, embora não possa dourar a pílula. Por volta dos meus sete, oito anos, dançava Short dick man, jogando os cabelos para o lado, me sentindo a diva e nem imaginava a tradução. Pior, pior ainda, a cantora se apresentar no Programa do Rubão e o povão na maior animação sem nem ter ideia do que cantava.
♏♏♏
No final do ano teve a tradicional festinha de despedida onde a professora, por ordem de chamada, escrevia o nome de cada aluno na lousa e perguntava o que cada um poderia trazer. Elza e Eliza, pobrezinhas, com nada podiam colaborar, menos ainda no amigo oculto (ou amigo da onça).
Peguei a Prof.ª Dulce. Como sempre via uma agenda de couro em cima da carteira dela, decidi lhe presentear com uma, a edição do ano seguinte, 1997.
— É, eu estava precisando de uma agenda nova. Ela é bem do jeito que eu gosto! Eu não gosto muito de amigo secreto, mas pelo menos dessa vez me dei bem.
Já eu não poderia dizer o mesmo porque Bruna me pegou e me deu uma caixa de lenços de papel amassados e usados. Tudo bem, a menina não precisava dar-me uma boneca, entretanto, a maldade era grande demais. Até Elza e Eliza se deram bem porque ganharam um conjuntinho de beleza cada, igual àquele que me roubaram, um menino ganhou uma fita de videogame. Que sacanagem!
Apesar dos problemas todos ao longo do ano, a festa foi divertida porque as meninas e eu comemos bastante bolo, brigadeiro, beijinho, cajuzinho, bebemos refrigerante e dançamos.
— Nem dá para acreditar que a gente já vai para a quarta série... — Comemorou Eliza quando nós três estávamos curtindo os raros momentos em que as crianças podiam brincar no decadente parquinho.
— Tomara que a gente fique na mesma sala. — Eu disse, sentada no balanço.
— Pela primeira vez na vida, só posso estar doente, eu não queria que as aulas acabassem.
— É, mana, você só pode estar doente!
— Odeio o colégio, odeio a turma, mas gosto muito de você, Tita. — Confessou-me Elza, chorosa. — Espero que um dia você seja muito feliz!
A irmã durona queria esconder a voz embargada, mas estava emotiva, entregando o quanto amava a nossa parceria em classe e nossas brincadeiras no recreio.
— Dois meses passam muito rápido, daqui a pouco já vai ser fevereiro de novo e a gente estará reclamando de ter que voltar para cá, pensar na Cássia, mas se eu estiver com vocês, não sinto medo dela.
♏♏♏
Em fevereiro, quando voltei do recesso para iniciar o último ano do primário, a triste surpresa: Elza e Eliza saíram da escola, pois quando o casarão onde se situava o educandário foi desativado pelo governo, todas as crianças foram remanejadas para outro lar de adoção. Estava eu sozinha novamente sob o jugo da perversa Cássia Reis...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Muito obrigada pela visita ao OCDM, espero que você tenha gostado do conteúdo e ele tenha sido útil, agradável, edificante, inspirador. Obrigada por compartilhar comigo o que de mais precioso você poderia me oferecer: seu tempo. Um forte abraço. Volte sempre, pois as páginas deste caderno estão abertas para te receber. ♥