Simplesmente Tita — 8⁰ Capítulo




Pouco depois do meu décimo aniversário, Horácio e Meire contaram-me que iríamos mudar de casa porque o proprietário daquele imóvel onde morávamos pediu-o de volta, tínhamos quarenta dias — contando com o recesso de final de ano — para deixarmos aquele lugar e enquanto os adultos visitavam a imobiliária, pegavam chaves e saíam para conhecer nosso novo lar.

A animação que me fez ir à festinha de confraternização foi quando a professora Dulce me escolheu para ser a oradora da classe e escrever um discurso para ler quando nossos diplomas fossem entregues.

Eu não havia pensado naquilo antes, pois só me interessava concluir aquele ano e pensei que Dulce sempre seria minha professora, porém, quando ela me contou que teríamos um professor para cada disciplina e tudo o mais, tomei um susto.

Dias antes, todos levamos na mochila algumas peças de roupa para a foto de formatura e a professora também anotou nome por nome e o que traria cada pessoa para a confraternização. Cássia Reis ficaria responsável pelo bolo de chocolate, Erick pelo refrigerante, sendo assim com os docinhos, salgados, copos e talheres de plástico, os guardanapos e o rádio.

Levei uma bandeja de papelão com cinquenta brigadeiros e não cheguei a comer nenhum. Sendo o uso do uniforme facultativo no último dia de aula, aproveitei para estrear o vestidinho jeans que ganhei de aniversário da Vó Olívia, esfreguei nos pulsos um pouquinho da loção com cheirinho de bebê, penteei o cabelo para trás, enfeitando-o com uma tiara colorida e nas costas carreguei a bolsinha do Aladdin com pedrinhas coloridas nas laterais.

Desci até o pátio para participar da entrega dos diplomas. Rezei mentalmente para que o meu anjo da guarda me ajudasse, subi ao palco quando o meu nome foi chamado, a professora me entregou o microfone e pediu para a criançada fazer silêncio. No entanto, tudo que podia dar errado, deu. Prato cheio para que Cássia e os seus amigos começassem a zombar de mim.

— Fala com a boca, otária! — Berrou Cássia.

— Volta para o pré, sua analfabeta! — Gritou Bruna.

— Tá se achando muito para quem vai catar lixo! — repetiu Camila.

Dulce encostou o dedo indicador na boca para pedir que o quarteto do mal fizesse silêncio, mas deu no mesmo que não dizer nada. Não me lembro do que discursei, apenas da voz embargada e da visão embaçada devido às lágrimas.

Após a troca de presentes do amigo da onça — ganhei um batom desses usados em amostras e usado, o que era pior ainda —, todos foram autorizados a descer para brincar no parquinho e nem do balanço eu podia me aproximar, o quarteto de Cássia sempre o monopolizava.

Por falar na abelha-rainha, ela adentrou a classe na companhia de mais três amigas, cercou-me na porta, impediu minha passagem e já foi engrossando o tom:

— Passa essa bolsa para mim, dentuça! — Ordenou ela, para o deleite das asseclas que impediam minha passagem.

— Não vou te passar nada!

— Ah, não vai, é? — Debochou ela, levantando uma das sobrancelhas.

— Não me enche!

— Não me enche! — Arremedou ela, que apanhou minha bolsinha e jogou-a na direção das outras meninas enquanto eu corria de uma parte a outra para tentar me apossar daquele objeto e servir de bobo-da-corte para aquelas abestalhadas.

Cansada daquela situação, num dado instante olhei bem nos olhos de Cássia Reis e desferi uma bofetada bem forte no rosto dela, que me empurrou contra uma carteira em retaliação. Lavei a alma, enchendo-a de bolsadas após passar quatro anos sem revidar as perseguições, porém me dei mal porque a Prof.ª Dulce flagrou o ato.

— Mas o que está acontecendo aqui? — Berrou a professora, separando os briguentos.

— Professora, ela estava tentando roubar a minha bolsa! — Bruna escandalizou.

— Cala a boca! — Vociferou Dulce.

— Professora, foi a Cássia que…

— Eu disse para você calar a boca! Estou cheia de você e do seu tatibitate. Estou cheia de você, ainda bem que não vou mais precisar olhar para a sua cara no próximo ano. Você é a causadora de todos os problemas nessa turma. Para a senhorita aprender uma lição, ficará aqui de castigo até a hora da saída!

— Mas…

— De castigo. Nem um pio.

Dulce fechou a porta atrás de mim e saiu acompanhada do quarteto de Cássia.

Do alto da janela, avistei a turma toda confraternizando e senti uma dorzinha no coração, aquela tristeza que me tocava em todos os aniversários, quando Meire punha à mesa um bolo de chocolate e três pratos porque, além dela, de mim e de Horácio, nunca havia mais ninguém.

Não me agradava passar a vida inteira olhando tudo acontecer do outro lado da janela. Estava cansada de ser maltratada, mal interpretada, solitária, invisível.

Se no final daquela manhã de dezembro as outras crianças estavam chorando e abraçando a Prof.ª Dulce, entregando-lhes cartõezinhos de Natal, optei por despedir-me dela em alto estilo: vi um tubo de cola branca aberto em cima da carteira da Cássia Reis e não pensei duas vezes, abri a bolsa daquela mulher antipática e grosseira, despejando todo o conteúdo lá dentro.

Em vista das palavras amargas que daqueles beiços enormes escutei, não era nada.

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