Esta história não começou com “era uma vez” e não terminará com “e foram felizes para sempre”. Falar de mim poderia ser fácil, no entanto, escrever é lembrar, lembrar é viver ou então reviver certas passagens. Entre os altos e baixos, aqui estou eu. Não anseio ser mártir, tampouco uma odiável vilã, por hoje me basta o direito de ser apenas humana.
Tudo começou por volta do ano de 1986, quando uma jovem mulher chamada Meire das Neves se matriculou em uma instituição que ofertava vagas gratuitas para cursos profissionalizantes. As exigências do mercado de trabalho só se faziam aumentar e ela era uma mulher determinada e ambiciosa. Durante os intervalos regados a suco de laranja e conversas ocasionais, reparou em um belo rapaz cuja idade regulava com a dela. Embora ainda não tivessem trocado nada mais que um olhar, um reparava no outro.
Um dia o jovem Félix decidiu sair do casulo e cumprimentar Meire. Eles conversaram um pouco, descobriram afinidades e lancharam coxinhas com achocolatado. Com isso, os encontros tornaram-se cada vez mais frequentes porque ambos estavam apaixonados demais para ignorar aquele sentimento tão bonito.
Um ano depois, o casal já morava junto e aguardava a chegada de uma garotinha. Eis que no dia 17 de novembro vim ao mundo de parto normal, às 04h38 da madrugada. Chamaram-me de Renata Muriel. O primeiro nome foi o único que Félix e Meire concordaram, o segundo foi uma homenagem à avó que a criou.
Às vésperas do meu terceiro aniversário, Félix e Meire passaram por algumas dificuldades no relacionamento e separaram-se. Com isso, mamãe e eu fomos morar de favor na casa da avó Olívia, mãe da minha mãe.
Mamãe e eu dormíamos juntas numa cama de casal com cabeceira de imbuía, um dos muitos presentes que Olívia guardou dos tempos em que ganhava a vida como diarista. As patroas mais gentis, quando trocavam a mobília, doavam utensílios, peças de roupa e até mesmo móveis. No quartinho havia um guarda-roupa de seis portas e uma cômoda larga de seis gavetas que combinavam com o conjunto.
Olívia sugeriu que a ida para a creche propiciaria o convívio com outras crianças e seria uma experiência benéfica para mim, Meire vetou de prontidão, mas nenhuma delas podia se dar ao luxo de parar de trabalhar e eu ainda era pequena demais para dar conta de mim mesma.
Meire nunca teve paciência para perguntas em demasia e reinações, todavia era eu um pedacinho de gente quando tive a audácia de pedi-la uma irmãzinha. Até o nome da bendita já estava decretado: Luísa. Desejava ensinar à pequenina tudo aquilo que aprendia (as letrinhas, os números, os bons modos), brincar de casinha, andar com ela para todo canto, do jeitinho que fazia com a Ciça, uma boneca de pano que mamãe confeccionou para mim a qual guardo até hoje (a pobrezinha está velhinha), tudo porque eu não tinha ninguém com quem brincar e nem idade para ir à escola. Eu tinha altas conversas com aquele pedaço de pano, ainda que minha progenitora me repreendesse por “falar sozinha”.
Meire das Neves sempre foi uma progenitora perfeccionista e autoritária. Detestava brinquedos espalhados pela casa e ai de mim se me sujasse na hora de papar. Não tinha conversa: deu oito horas, cama. Aprendi a ler e escrever antes de entrar na escola, a custo de muitos tapas. Ela sentia raiva do meu pai e tentava me corrigir por considerar a convivência com Felix um mimo sem precedentes. À medida que fazia isso, mais e mais eu adorava o papai.
Aliás, eu tinha dois pais.
Meire arranjou um namorado novo que se chamava Horácio. Ele era alto, esquálido, tinha o rosto fino, pestanas grossas, olhos esverdeados e melancólicos, chamava atenção pelo bigode de escova. Era um homem íntegro, trabalhador e almejava construir uma família ao lado de mamãe, aceitando-me sem reservas como sua pequena e adorável enteada.
Meire e Horácio casaram-se quando eu estava com quase cinco anos. Fui a dama de honra, contudo, até hoje sinto pavor de ver a foto em que usava um vestido ridículo de mangas bufantes.
Mamãe não permitia que eu saísse para brincar. Era um pouco melancólico sempre brincar sozinha enquanto via pela janela as outras criancinhas andando de bicicleta, jogando bola, brincando de pique-esconde enquanto eu tinha de ficar em casa, sendo proibida de quase tudo. Morávamos em uma rua sem saída e em meados dos anos 1990 era um dos lugares mais seguros da nossa cidade. Lógico que hoje em dia já não posso dizer o mesmo.
Fitinha rosa na cabeça, cabelo escovado, vestidinho na altura do joelho, meia-calça transparente e sapatilha cor-de-rosa. Sentada no sofá era uma legítima bonequinha de porcelana com sorridentes olhos castanhos.
Eu era a filha que toda mãe queria ter, exceto a minha.
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Quando completei seis anos, fui matriculada na primeira série do ensino fundamental. Imaginava a escolinha como sendo um playground gigante em que todo mundo brincava com todo mundo, onde eu faria muitos amigos para compartilhar sonhos e aventuras. Falou a iludida!
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Recordo-me de ter acordado tão alegre que mal via a hora de juntar-me aos futuros amiguinhos. Alguns pequenos choravam em frente ao portão, outros recusavam-se a descer do carro e eu me sentia super adulta, chorar daquele jeito parecia coisa de criança. Isso, claro, até reparar que o cinza era a cor predominante daqueles blocos, havia calçadas quebradas, muros pichados, a quadra de esporte sucateada, sem falar nos grandões mal-encarados que estavam por toda a parte.
De todas as decepções, a pior: o parquinho estava fechado com cadeado. Que tristeza!
Meire procurou meu nome em uma das quatro listas de ensalamento coladas na parede e depois disso caminhamos até onde as pessoas da minha turma formavam uma fila indiana (meninas de um lado, meninos de outro). Por mais estranho que pudesse ser, vi a troglodita fungando um pouco para disfarçar as lágrimas e gradualmente se afastar sem se despedir de mim.
Imaginei a professora, uma moça de cabelos longos, presos em uma linda trança que caía pelos ombros, que gostava de usar vestidos de estampas alegres e tinha uma paciência enorme com crianças, até com as mais intragáveis, escandalosas e mimadas. A voz dela era tão suave que o pranto por ralar o joelho faria até o mertiolate não arder tanto.
O som estridente do sinal interrompeu os devaneios e logo pude ver uma mulher corpulenta, mal-encarada e mal-humorada aproximar-se da turma. Antes disso, já havia uma menina ruiva cutucando a amiguinha loira para tirar sarro de mim. O motivo, eu desconhecia.
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A situação não melhorou no segundo dia, nem no terceiro. O mapeamento da turma, feito com base na ordem da chamada nominal, assegurou algum fôlego por não me sentar tão próxima à Cassia Reis, a tal menina ruiva que já não foi com a minha cara. Ela esticava as pernas para eu tropeçar, pregava peças tão somente para ver a professora Dulce brigar comigo. Todos os esforços para ser amigável, assertiva e gentil não surtiam efeito nenhum.
Cássia Reis andava com mais três garotas, todas elas "patricinhas" e de beleza padrãozinho. Bruna era a melhor amiga dela, loira de olhos azuis, queria ser médica quando crescesse. Camila tinha o cabelo castanho-claro e olhos verdes, o pai era dono de uma pizzaria e, por fim, Nicole, loira de olhos castanho-claros, filha da dona do salão mais badalado do bairro. Embora Bruna também tenha sido mentora de muitos dos episódios violentos do primário, a personagem mais importante é a líder do grupo.
O quarteto lanchava na escadaria do bloco da nossa turma, onde ficavam também todas as outras do primário. Uma toalha felpuda cor-de-rosa estendia-se sobre o piso de cimento polido e dispostas estavam as lancheiras repletas de adesivos, bolinhos recheados, biscoitos, sucos e salgadinhos.
Uma vez foi o suficiente. Eu era persona non grata porque, quando me aproximei delas, ainda nos primeiros dias de aula, Cássia olhou de esguelha para Bruna, que cochichou no ouvido de Camila e somente um minuto depois, encontrava-me sozinha, com um grande ponto de interrogação na cara.
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Antes fosse não ser querida só pelas patricinhas, o negócio era muito mais sério. Nem as crianças que não tinham panelinhas queriam falar comigo, era só eu chegar que todo mundo saía de perto. Dulce me olhava com desprezo e também abria precedentes para fomentar ainda mais ódio nos outros, chamava-me de antipática e mimada. Ela não falava, gritava, humilhava, sentia a necessidade de magoar de graça e ainda dizer que eu não “aceitava” brincadeiras.
Periodicamente, a Prof.ª Dulce convocava uma reunião com os pais e/ou responsáveis de todos os alunos visando fazer um balanço das nossas atividades em classe. A primeira ocorreu em abril. Fui definida como o “estorvo”, a menina atrasada que se achava superior demais para falar com as outras crianças (sendo que era bem o contrário), desinteressada, embora admitisse que eu era preguiçosa porque ela sabia que eu sabia a matéria. Não é uma mentira de todo. Eu já era alfabetizada e sabia fazer contas de soma e subtração, queria aprender outras coisas, logo, estava entediada.
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Quando voltamos para casa, mamãe arrastou-me até o banheiro, ligou o chuveiro e bateu em mim com tanta fúria, parando somente quando caí no chão, ameaçando me matar se por acaso recebesse uma só reclamação da professora na reunião seguinte e “passasse vergonha” por minha causa.
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Mal sabia eu que o inferno estava apenas no início porque Cássia Reis e as amigas viram Meire me conduzir até o carro à base de puxão de orelha e chutes, contudo, os apelidos maldosos se renovavam e a criatividade daquelas crianças era grande.
As notas aumentaram, Dulce passou a me elogiar e, em contrapartida, eu não tinha nenhum amigo. Meus recreios eram bastante solitários, posto que era agredida pelos “grandões”, pelo quarteto de Cássia, excluída das festinhas, porém orgulhava minha mãe, que bradava com prazer o êxito do seu “método educacional”.
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