Simplesmente Tita — 6º Capítulo



6º Capítulo 

— E aí, Tita? Como se chama o cachorrinho? — Inquiriu Eliza, que também sonhava em um dia ter muitos cachorrinhos. 
— Não ganhei cachorrinho nenhum. 
— Ah… — lamentou ela. 
— Conta mais, vai… — pediu Elza. 
— Teve festa? 
— Minha mãe não gosta de comemorar aniversário e meu pai se esqueceu do meu aniversário. Não teve nada. 
As meninas ficaram atarantadas e mais uma vez vi-me em um mar de lágrimas. 
— Meu pai não me ama mais! 
— Ué, vai que ele se esqueceu do seu aniversário porque ficou muito doente? — Refletiu Elza. — Ou por ser esquecido? 
— Meu pai nunca se esquece do meu aniversário. Ele pode ser esquecido para outros aniversários, não para o meu. 
— Mas...? — Insistiu Eliza. 
— Ele está namorando! 
— E daí? — Atalhou Elza. 
— E daí que agora ele não me ama mais. 
— Não é só porque ele está namorando que tenha deixado de te amar.
— A mana tem razão, mas você sabe que agora que seu pai está namorando, que ele pode se casar com essa moça e...
— Não fala mais nada! — Estiquei a mão esquerda para frente. Estava muito óbvio o que viria depois.
— Não! — Gritei, apavorada. 
— Isso pode acontecer, Tita. — Advertiu-me Elza. — E você sabe que bebês dão muito trabalho, então pode ser que você não veja mais o seu pai como antes. 
— Ei, Tita! Conta para a gente: a moça te tratou mal? — Implorou Eliza, querendo saber mais sobre Helena, se a nova namorada do papai era candidata a madrasta má. 
— Não, mas já detesto essa bruxa... detesto essa bruxa porque o papai agora gosta mais dela do que de mim... e agora a detesto mais só de pensar que ela vai fazer de tudo para tirar o meu pai de mim... por causa dela, ele se esqueceu do meu aniversário!
Elza e Eliza, sem grandes conselhos para me dar, me ofereceram um longo e abraço, como se fossem minhas irmãs mais velhas. Antes de entrarmos na fila que a Prof.ª Dulce organizava para nos encaminhar até a classe, Elza me disse algo que ficou grudado na memória: 
— Toda princesa tem uma história triste, mas no final, de um jeito ou de outro, as coisas acabam dando certo! 

♏♏♏ 

Gradualmente, os passeios restringiram-se a cada quinze ou vinte dias. Era comum que Helena nos acompanhasse. A namorada do meu pai gostava de ouvir rádios populares e naquela época o axé dominava as paradas. Nunca fui fã desse gênero por motivos óbvios. Minha referência musical vinha de mamãe e Horácio, que gostavam de rock. 
Como toda garota ciumenta, tentei de tudo para chamar a atenção. Em uma ocasião, joguei-me no corredor dos chocolates no mercado porque papai não quis comprar um chocolate, porém Félix ignorou-me e não me restou nada a não ser levantar-me do chão sem dignidade alguma. Outra vez levei uma bronca feia porque cismei de chutar o banco do carona. 
— O que diabos está acontecendo com você, Renata? — reagiu Félix, possesso. 
Chamar-me de Renata era o indicativo mais claro de que Félix Linhares estava aborrecido. 
— Meu nome não é Renata. — Disse, dando de ombros, fazendo de conta que Helena não estava ali, estourando uma bolinha de chiclete, daquelas bem ruidosas e irritantes. 
— Seu nome é Renata, sim! Seu nome é Renata e é assim que você vai ser chamada. — Bronqueou Félix. 
— Não sei quem é essa Renata... — Cruzei os bracinhos, indignada. — Sou a Tita e só falo com você se você me chamar de Tita! 
Félix apertou o volante para não me dar uns cascudos, mas Helena interveio: 
— Dê um tempo a ela, meu bem. 
— Essa menina está impossível! Onde é que já se viu? 
— Na idade dela, é normal ficar enciumada, mas vai passar, meu bem, tenha calma! 
Calma era uma palavra que Félix e eu ignorávamos em nossos dicionários pessoais por aqueles tempos. 
Aquela figura do herói que me salvava da opressão se desvanecia a cada desilusão. De princesa absoluta a boba da corte. Helena era a sua preferida. Para ela, o mundo, o universo. Para mim, as migalhas. Meire colaborava sobremaneira para fomentar o desprezo pela futura madrasta, logo, a mansidão escondia os verdadeiros objetivos dela.

♏♏♏

A bomba completa que terminou de estilhaçar minhas esperanças caiu num almoço de domingo no restaurante que frequentávamos desde sempre, em plenas Olimpíadas de Atlanta, ao som de Reach, da Gloria Estefan.
― Temos uma novidade para contar ― celebrou Helena levando uma generosa garfada de lasanha à boca.
― Novidade? Qual? ― Servi-me com refrigerante de cola. Sempre apreciei beber na garrafa de vidro porque me parece que o gosto fica melhor.
— No próximo mês, Helena e eu nos casaremos na igreja! — Félix anunciou.
― Vocês vão…?
― Minha querida, eu já conversei com a costureira responsável pelo meu vestido e como você vai ser nossa dama de honra, usará um vestidinho igual ao meu! ― Revelou Helena, que mal sabia esconder o sorriso.
― O que você acha disso, minha filha? ― Quis saber Félix.
Encarei o prato cheio sem dizer palavra. Aquela era a minha resposta.
― Parece que você não gostou nem um pouquinho da notícia ― comentou Helena. ― Nem na comida você tocou.
Eu adorava lasanha à bolonhesa com batata-frita, risoto, refrigerante e sorvete napolitano. Meu pecadinho alimentar de quase todos os domingos.
— Não estou com fome!
— Você disse que estava. — Meu pai, confuso, me encarou desconfiado.
— Mudei de ideia! Quero ir para o parquinho!
— A senhorita não sai daqui enquanto não limpar esse prato! — Félix levantou a voz comigo diante de Helena e foi aí que cruzei os braços, já sentindo os olhos úmidos.
— Eu não estou reconhecendo você, Tita. O que há com você? — Questionou Félix.
— Dê um tempo, meu amor. Ela ficará bem.
— Helena, se a gente não repreende os maus modos dos pequenos, depois de grande, é muito mais difícil de corrigir.
— Félix, meu bem, ela é uma menina sensível — ilustrou a moça.
— A verdade é que você estragou tudo — desabafei.
— Eu? — Espantou-se Helena.
— Você, sim. Nossa vida era muito melhor antes de você chegar, sua bruxa! Você roubou o meu pai de mim! Odeio você! Por causa de você, ele se esqueceu do meu aniversário e não gosta mais de mim! Por causa de você, ele só me trata mal! Você estragou tudo! Eu não gosto e nunca vou gostar de você! A única mulher da vida do meu pai foi a minha mãe e eu não quero que você tente pegar o lugar da minha mãe. Eu já tenho uma mãe e não quero outra. Quero que você deixe o meu pai em paz e vá embora! Vá embora!
Helena empalideceu e até perdeu o apetite quando disparei a verdade. Atordoada, balançou a cabeça e olhou com horror para Félix, que tomou a palavra:
— Escute aqui, sua menininha egoísta, insolente e mal-educada, onde estão os modos? — Admoestou o noivo, enfurecido. — Essa não é a maneira mais bonita e cordial de se referir a uma mulher, principalmente a Helena. O que ela te fez para você tratá-la dessa forma grosseira?
— Eu não gosto dela!
— Gostando ou não dela, isso não lhe dá o direito de falar assim com ela, sabia? Ela é mais velha que você e nós devemos nos dirigir com respeito às pessoas mais velhas, caso sua mãe não tenha te ensinado. E mais um recado para você, sua mal-educada: faça o favor de pedir desculpas à Helena agora mesmo se não quiser levar uma surra!
— Não vou pedir desculpas.
— Vai, sim! — Esbravejou papai.
— Estou mandando!
— Não vou!
— Félix, benzinho... — Advertiu Helena, chorosa, pois ele queria me dar uma surra lá mesmo. Eu conhecia a linguagem corporal de um adulto enfurecido.
— Vou me casar com a Helena, queira você ou não! ― Decretou Félix, apertando as mãos de Helena, evidenciando que dali por diante restavam-me duas alternativas: a) ou eu aceitava aquela mulher nos nossos caminhos, ou b) ia embora.
Apanhei a bolsinha de cachorrinho pendurada na alça da cadeira, empurrei-a com força e saí correndo de lá. Domingo à tarde o restaurante se encontrava lotado e todos os salões ficavam apinhados de pessoas e seus falatórios, de modo que quando cheguei ao estacionamento, com o coração aos pulos, já sinalizava rendição.
O parquinho era o lugar menos seguro para ficar escondida. Apoiei as mãos nos joelhos e respirei fundo. Havia sido uma maratona e tanto para uma garotinha de oito anos, que corria bastante na hora do recreio, tanto para acompanhar o pique das irmãs do educandário quanto para fugir das maldades da Cássia, logo, não era a primeira vez que o desespero era meu guia e também não seria a última.
— E aí, dama? — Eu nem precisaria erguer a cabeça para reconhecer aquela ironia típica de Meire das Neves: — Eu não vou entrar. Não quero entrar!
— Pensei que estivesse animadíssima para ser a dama de honra.
— Não vou nem arrastada!
— Que animação, menina!
Nunca soube segurar o choro nem a raiva. Não queria ser dama de honra de ninguém, muito menos aceitar Helena como madrasta. Aquela bondade me soava falsa e seria questão de tempo para que ela mostrasse quem realmente era. Se eu fosse morar com ela, aposto como seria igualzinho à história da Cinderela. No meu caso, nem a fada madrinha poderia desfazer a maldição.

♏♏♏

No início daquela noite, Helena telefonou para a nossa casa e quem atendeu foi Horácio. Eles conversaram por algum tempo e meu padrasto mais ouvia do que falava. Meire, sentada no sofá, o fuzilava com o olhar.
Eu abraçava uma almofada, temia mais uma daquelas brigas horrorosas e ter de esconder-me no guarda-roupa, apesar de mamãe lá me encontrar e descontar toda a raiva em cima de mim. Mas nada disso aconteceu.
— Meire, você ainda tem tempo de evitar uma tragédia ainda maior!
Tragédia é ver minha filha ardendo de febre por causa desse canalha! — Devolveu Meire, que me olhou no sofá, não me sentiu lá muito bem, mediu a temperatura e pingou aquelas gotas amargas num copo d'água, no entanto, aquela febre era diferente das outras, não vinha acompanhada de dor de garganta, coriza, moleza no corpo, era a alma querendo dizer que já havia chegado ao seu limite.
Sempre que eu sofria um choque emocional muito grande, parava na cama, ardendo em febre, a ponto de preocupar Meire, que chegava muitas vezes a me levar de madrugada para o pronto-socorro.
A pergunta de qualquer médico que me atendia era sempre a mesma:
— Sua filha passou por alguma situação traumática?

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